O Livro do Desassossego - Fernando Pessoa - Parte 4

Sonho triangular

No meu sonho no convés estremeci – é que pela minha alma de Príncipe Longínquo passou um arrepio de presságio.

Um silêncio ruidoso a ameaças invadia como uma brisa lívida a atmosfera visível da saleta.

Tudo isto é haver um brilho excessivo a inquietá-lo no luar sobre o oceano que não embala já mas estremece; tornou-se evidente – e eu ainda os não ouvi – que há ciprestes ao pé do palácio do Príncipe.

O gládio do primeiro relâmpago volteou vagamente no além... É cor de relâmpago o luar sobre o mar alto e tudo isto é ser ruínas já e passado afastado o meu palácio do príncipe que nunca fui...

Com um ruído soturno e aproximando-se o navio entre as águas, a saleta escurece lividamente, e não morreu, não está preso algures, não sei o que [é] feito dele – do príncipe – que gélida coisa desconhecida lhe é o destino agora?...


[301]

A única maneira de teres sensações novas é construíres-te uma alma nova. Baldado esforço o teu se queres sentir outras coisas sem sentires de outra maneira, e sentires de outra maneira sem mudares de alma. Porque as coisas são como nós as sentimos – há quanto tempo sabes tu isto sem o saberes? – e o único modo de haver coisas novas, de sentir coisas novas é haver novidade no senti-las.

Muda de alma. Como? Descobre-o tu.

Desde que nascemos até que morremos mudamos de alma lentamente, como do corpo. Arranja meio de tornar rápida essa mudança, como com certas doenças, ou certas convalescenças, rapidamente o corpo se nos muda.

Não descer nunca a fazer conferências, para que não se julgue que temos opiniões, ou que descemos ao público para falar com ele. Se ele quiser, que nos leia.

De mais a mais o conferenciador semelha ator – criatura que o bom artista despreza, moço de esquina da Arte.



[302]

Descobri que penso sempre, e atendo sempre, a duas coisas no mesmo tempo. Todos, suponho, serão um pouco assim. Há certas impressões tão vagas que só depois, porque nos lembramos delas, sabemos que as tivemos; dessas impressões, creio, se formará uma parte – a parte interna, talvez – da dupla atenção de todos os homens. Sucede comigo que têm igual relevo as duas realidades a que atendo. Nisto consiste a minha originalidade. Nisto, talvez, consiste a minha tragédia, e a comédia dela.

Escrevo atentamente, curvado sobre o livro em que faço a lançamentos a história inútil de uma firma obscura; e ao mesmo tempo o meu pensamento segue, com igual atenção, a rota de um navio inexistente por paisagens de um oriente que não há. As duas coisas estão igualmente nítidas, igualmente visíveis perante mim: a folha onde escrevo com cuidado, nas linhas pautadas, os versos da epopéia comercial de Vasques e Cia, e o convés onde vejo com cuidado, um pouco ao lado da pauta alcatroada dos interstícios das tábuas, as cadeiras longas alinhadas, e as pernas saídas dos que sossegam na viagem.

(Se eu for atropelado por uma bicicleta de criança, essa bicicleta de criança torna-se parte da minha história.)

Intervém a saliência da casa de fumo; por isso só as pernas se vêem.

Avanço a pena para o tinteiro e da porta da casa de fumo – quase mesmo ao pé de onde sinto que estou – sai o vulto do desconhecido. Vira-me as costas e avança para os outros. O seu modo de andar é lento e as ancas não dizem muito. É inglês. Começo um outro lançamento. Tento ver por que ia enganado. É a débito e não a crédito da conta do Marques. (Vejo-o gordo, amável, piadista e, num momento, o navio desaparece.)



[303]

O mundo é de quem não sente. A condição essencial para se ser um homem prático é a ausência de sensibilidade. A qualidade principal na prática da vida é aquela qualidade que conduz à ação, isto é, a vontade. Ora há duas coisas que estorvam a ação – a sensibilidade e o pensamento analítico, que não é, afinal, mais que o pensamento com sensibilidade. Toda a ação é, por sua natureza, a projeção da personalidade sobre o mundo externo, e como o mundo externo é em grande e principal parte composto por entes humanos, segue que essa projeção da personalidade é essencialmente o atravessarmo-nos no caminho alheio, o estorvar, ferir e esmagar os outros, conforme o nosso modo de agir.

Para agir é, pois, preciso que nos não figuremos com facilidade as personalidades alheias, as suas dores e alegrias. Quem simpatiza pára. O homem de ação considera o mundo externo como composto exclusivamente de matéria inerte – ou inerte em si mesma, como uma pedra sobre que passa ou que afasta do caminho; ou inerte como um ente humano que, porque não lhe pôde resistir, tanto faz que fosse homem como pedra, pois, como à pedra, ou se afastou ou se passou por cima.

O exemplo máximo do homem prático, porque reúne a extrema concentração da ação com a sua extrema importância, é a do estratégico. Toda a vida é guerra, e a batalha é, pois, a síntese da vida. Ora o estratégico é um homem que joga com vidas como o jogador de xadrez com peças do jogo. Que seria do estratégico se pensasse que cada lance do seu jogo põe noite em mil lares e mágoa em três mil corações? Que seria do mundo se fôssemos humanos? Se o homem sentisse deveras, não haveria civilização. A arte serve de fuga para a sensibilidade que a ação teve que esquecer. A arte é a Gata Borralheira, que ficou em casa porque teve que ser.

Todo o homem de ação é essencialmente animado e otimista porque quem não sente é feliz. Conhece-se um homem de ação por nunca estar mal disposto. Quem trabalha embora esteja mal disposto é um subsidiário da ação; pode ser na vida, na grande generalidade da vida, um guarda-livros, como eu sou na particularidade dela. O que não pode ser é um regente de coisas ou de homens. À regência pertence a insensibilidade. Governa quem é alegre porque para ser triste é preciso sentir.

O patrão Vasques fez hoje um negócio em que arruinou um indivíduo doente e a família. Enquanto fez o negócio esqueceu por completo que esse indivíduo existia, exceto como parte contrária comercial. Feito o negócio, veio-lhe a sensibilidade. Só depois, é claro, pois, se viesse antes, o negócio nunca se faria. “Tenho pena do tipo”, disse-me ele. “Vai ficar na miséria.” Depois, acendendo o charuto, acrescentou: “Em todo o caso, se ele precisar qualquer coisa de mim” – entendendo-se qualquer esmola – “eu não esqueço que lhe devo um bom negócio e umas dezenas de contos.”

O patrão Vasques não é um bandido: é um homem de ação. O que perdeu o lance neste jogo pode, de fato, pois o patrão Vasques é um homem generoso, contar com a esmola dele no futuro.

Como o patrão Vasques são todos os homens de ação – chefes industriais e comerciais, políticos, homens de guerra, idealistas religiosos e sociais, grandes poetas e grandes artistas, mulheres formosas, crianças que fazem o que querem. Manda quem não sente. Vence quem pensa só o que precisa para vencer. O resto, que é a vaga humanidade geral, amorfa, sensível, imaginativa e frágil, e não mais que o pano de fundo contra o qual se destacam estas figuras da cena até que a peça de fantoches acabe, o fundo-chato de quadrados sobre o qual se erguem as peças de xadrez até que as guarde o Grande Jogador que, iludindo a reportagem com uma dupla personalidade, joga, entretendo-se sempre contra si mesmo.



[304]

A fé é o instinto da ação.



[305]

O meu hábito vital de descrença em tudo, especialmente no instintivo, e a minha atitude natural de insinceridade, são a negação de obstáculos a que eu faça isto constantemente.

No fundo o que acontece é que faço dos outros o meu sonho, dobrando-me às opiniões deles para, expandindo-as pelo meu raciocínio e a minha intuição, as tornar minhas e (eu, não tendo opinião, posso ter as deles como quaisquer outras) para as dobrar a meu gosto e fazer das suas personalidades coisas aparentadas com os meus sonhos.

De tal modo anteponho o sonho à vida que consigo, no trato verbal (outro não tenho), continuar sonhando, e persistir, através das opiniões alheias e dos sentimentos dos outros, na linha fluida da minha individualidade amorfa.

Cada outro é um canal ou uma calha por onde a água do mar só corre a gosto deles, marcando, com as cintilações da água ao sol, o curso curvo da sua orientação mais realmente do que a secura deles o poderia fazer.

Parecendo às vezes, à minha análise rápida, parasitar os outros, na realidade o que acontece é que os obrigo a ser parasitas da minha posterior emoção. Habita o meu viver as cascas das suas individualidades. Decalco as suas passadas em argila do meu espírito e assim mais do que eles, tomando-as para dentro da minha consciência, eu tenho dado os seus passos e andado nos seus caminhos.

Em geral, pelo hábito que tenho de, desdobrando-me, seguir ao mesmo tempo duas, diversas operações mentais [...] eu, ao passo que me vou adaptando em excesso e lucidez ao sentir deles, vou analisando em mim o desconhecido estado da alma deles, fazendo a análise puramente objetiva do que eles são e pensam. Assim, entre sonhos, e sem largar o meu devaneio ininterrupto, vou, só vivendo-lhes a essência requintada das suas emoções às vezes mortas, mas compreendendo e classificando as lógicas interconexas das várias forças do seu espírito que jaziam às vezes num estado simples da sua alma.

E no meio disto tudo a sua fisionomia, o seu traje, os seus gestos, não me escapam. Vivo ao mesmo tempo os seus sonhos, a alma do instinto e o corpo e atitudes deles. Numa grande dispersão unificada, ubiquito-me neles e eu crio e sou, a cada momento da conversa, uma multidão de seres, conscientes e inconscientes, analisados e analíticos, que se reúnem em leque aberto.



[306]

Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em todas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda o impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas de ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros eram enamorados só da beleza, outros tinham a fé na ciência e nos seus proveitos, e havia outros que, mais cristãos ainda, iam buscar a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente viver.

Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nascemos órfãos. Cada civilização segue a linha íntima de uma religião que a representa: passar para outras religiões é perder essa, e por fim perdê-las a todas.

Nós perdemos essa, e às outras também.

Ficamos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de se sentir viver. Um barco parece ser um objeto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nós encontramo-nos navegando, sem a idéia do porto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é preciso.

Sem ilusões, vivemos apenas do sonho, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios, diminuímo-nos, porque o homem completo é o homem que se ignora. Sem fé, não temos esperança, e sem esperança não temos propriamente vida. Não tendo uma idéia do futuro, também não temos uma idéia de hoje, porque o hoje, para o homem de ação, não é senão um prólogo do futuro. A energia para lutar nasceu morta conosco, porque nós nascemos sem o entusiasmo da luta.

Uns de nós estagnaram na conquista alvar do quotidiano, reles e baixos buscando o pão de cada dia, e querendo obtê-lo sem o trabalho sentido, sem a consciência do esforço, sem a nobreza do conseguimento.

Outros, de melhor estirpe, abstivemo-nos da coisa pública, nada querendo e nada desejando, e tentando levar até ao calvário do esquecimento a cruz de simplesmente existirmos. Impossível esforço, em que[m] não tem, como o portador da Cruz, uma origem divina na consciência.

Outros entregaram-se, atarefados por fora da alma, ao culto da confusão e do ruído, julgando viver quando se ouviam, crendo amar quando chocavam contra as exterioridades do amor. Viver doía-nos, porque sabíamos que estávamos vivos; morrer não nos aterrava porque tínhamos perdido a noção normal da morte.

Mas outros, Raça do Fim, limite espiritual da Hora Morta, nem tiveram a coragem da negação e do asilo em si próprios. O que viveram foi em negação, em descontentamento e em desconsolo. Mas vivemo-lo de dentro, sem gestos, fechados sempre, pelo menos no gênero de vida, entre as quatro paredes do quarto e os quatro muros de não saber agir.



[307]

Estética do desalento

Já que não podemos extrair beleza da vida, busquemos ao menos extrair beleza de não poder extrair beleza da vida. Façamos da nossa falência uma vitória, uma coisa positiva e erguida, com colunas, majestade e aquiescência espiritual.

Se a vida [não] nos deu mais do que uma cela de reclusão, façamos por ornamentá-la, ainda que mais não seja, com as sombras de nossos sonhos, desenhos a cores mistas esculpindo o nosso esquecimento sobre a parada exterioridade dos muros.

Como todo o sonhador, senti sempre que o meu mister era criar. Como nunca soube fazer um esforço ou ativar uma intenção, criar coincidiu-me sempre com sonhar, querer ou desejar, e fazer gestos com sonhar os gestos que desejaria poder fazer.



[308]

À minha incapacidade de viver crismei de gênio, à minha covardia cobri-a de lhe chamar requinte. Pus-me a mim, Deus dourado com ouro falso, num altar de papelão pintado para parecer mármore.

Mas a mim não enganei nem a consciência do meu enganar-me.



[309]

O prazer de nos elogiarmos a nós próprios...

Paisagem de chuva

Cheira-me a frio, a mágoa, a serem impossíveis todos os caminhos, a idéia de todos os ideais.

As mulheres contemporâneas tais arranjos do seu porte e do seu vulto talham, que dão uma dolorosa impressão de efêmeras e de insubstituíveis...

Os seus e adereços tais as pintam e cobram, que mais decorativas se tornam do que carnalmente viventes. Frisas, painéis, quadros – não são, na realidade da vista, mais do que tanto...

O mero voltear dum xaile para cima dos ombros usa hoje mais consciência à visão do gesto em quem o faz do que antigamente. Dantes o xaile era parte do traje; hoje é um detalhe resultante de intuições de puro gozo estético.

Assim, nestes nossos dias, tão vívidos através de fazerem tudo arte, tudo arranca pétalas ao consciente e se integra em volubilidades de extático.

Trânsfugas de quadros não feitos essas figuras femininas todas... Há por vezes detalhes a mais nelas... Certos perfis existem com exagerada nitidez. Brincam a irreais pelo excesso com que se separam, linhas puras, do ambiente fundo.



[310]

Minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia.

Todo o esforço é um crime porque todo o gesto é um sonho morto.

As tuas mãos são rolas presas. Os teus lábios são rolas mudas (que aos meus olhos vêm arrulhar).

Todos os teus gestos são aves. És andorinha no abaixares-te, condor no olhares-me, águia nos teus êxtases de orgulhosa indiferente. É toda ranger de asas, como do s, a lagoa de eu te ver.

Tu és toda alada, toda

Chove, chove, chove...

Chove constantemente, gemedoramente

Meu corpo treme-me a alma de frio... Não um frio que há no espaço, mas um frio que há em ver a chuva...

Todo o prazer é um vício, porque buscar o prazer é o que todos fazem na vida, e o único vício negro é fazer o que toda a gente faz.



[311]

Às vezes, sem que o espere ou deva esperá-lo, a sufocação do vulgar me toma a garganta e tenho a náusea física da voz e do gesto do chamado semelhante. A náusea física direta, sentida diretamente no estômago e na cabeça, maravilha estúpida da sensibilidade desperta... Cada indivíduo que me fala, cada cara cujos olhos me fitam, afeta-me como um insulto ou como uma porcaria. Extravaso horror de tudo. Entonteço de me sentir senti-los.

E acontece, quase sempre, nestes momentos de desolação estomacal, que há um homem, uma mulher, uma criança até, que se ergue diante de mim como um representante real da banalidade que me agonia. Não representante por uma emoção minha, subjetiva e pensada, mas por uma verdade objetiva, realmente conforme de fora com o que sinto de dentro que surge por magia analógica e me traz o exemplo para a regra que penso.



[312]

Há dias em que cada pessoa que encontro, e, ainda mais, as pessoas habituais do meu convívio forçado e quotidiano, assumem aspectos de símbolos, e, ou isolados ou ligando-se, formam uma escrita poética ou oculta, descritiva em sombras da minha vida. O escritório torna-se-me uma página com palavras de gente; a rua é um livro; as palavras trocadas  com os usuais, os desabituais que encontro, são dizeres para que me falta o dicionário mas não de todo o entendimento. Falam, exprimem, porém não é de si que falam, nem a si que exprimem; são palavras, disse, e não mostram, deixam transparecer. Mas, na minha visão crepuscular, só vagamente distingo o que essas vidraças súbitas, reveladas na superfície das coisas, admitem do interior que velam e revelam. Entendo sem conhecimento, como um cego a quem falem de cores.

Passando às vezes na rua, ouço trechos de conversas íntimas, e quase todas são da outra mulher, do outro homem, do rapaz da terceira ou da amante daquele. Levo comigo, só de ouvir estas sombras de discurso humano que é afinal o tudo em que se ocupam a maioria das vidas conscientes, um tédio de nojo, uma angústia de exílio entre aranhas e a consciência súbita do meu amarfanhamento entre  gente real; a condenação de ser vizinho igual, perante o senhorio e o sítio, dos outros inquilinos do aglomerado, espreitando com nojo, por entre as grades traseiras do armazém da loja, o lixo alheio que se entulha à chuva no saguão  que é a minha vida.



[313]

Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes. A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira. Mas, como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente à de um homem com dor de dentes que houvesse recebido uma fortuna – a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles (ainda que de outro modo) à alegria e à dor.

Por isto, contudo, os amo a todos. Meus queridos vegetais!



[314]

Desejaria construir um código de inércia para os superiores nas sociedades modernas. A sociedade governar-se-ia espontaneamente e a si própria, se não contivesse gente de sensibilidade e de inteligência. Acreditem que é a única coisa que a prejudica. As sociedades primitivas tinham uma feliz existência mais ou menos assim. Pena é que a expulsão dos superiores da sociedade resultaria em eles morrerem, porque não sabem trabalhar. E talvez morressem de tédio, por não haver espaços de estupidez entre eles. Mas eu falo do ponto de vista da felicidade humana. Cada superior que se manifestasse na sociedade seria expulso para a ilha dos superiores. Os superiores seriam alimentados, como animais em jaula, pela sociedade normal. Acreditem: se não houvesse gente inteligente que apontasse os vários mal-estares humanos, a humanidade não dava por eles. E as criaturas de sensibilidade fazem sofrer os outros por simpatia. Por enquanto, visto que vivemos em sociedade, o único dever dos superiores é reduzirem ao mínimo a sua participação na vida da tribo. Não ler jornais, ou lê-los só para saber o que de pouco importante e curioso se passa. Ninguém imagina a volúpia que arranco ao noticiário sucinto das províncias. Os meros nomes abrem-me portas sobre o vago. O supremo estado honroso para um homem superior é não saber quem é o chefe de Estado do seu país, ou se vive sob monarquia ou sob república. Toda a sua atitude deve ser colocar-se a alma de modo que a passagem das coisas, dos acontecimentos não o incomode. Se o não fizer terá que se interessar pelos outros, para cuidar de si próprio.



[315]

Perder tempo comporta uma estética. Há, para os sutis nas sensações, um formulário da inércia que inclui receitas para todas as formas de lucidez.

A estratégia com que se luta com a noção das conveniências sociais, com os impulsos dos instintos, com as solicitações do sentimento exige um estudo que qualquer mero esteta não suporta fazer. A uma acurada etiologia dos escrúpulos deve seguir-se uma diagnose irônica das subserviências à normalidade. Há a cultivar, também, a agilidade contra as intrusões da vida; um cuidado deve couraçar-nos contra sentir as opiniões alheias, e uma mole indiferença encamar-nos a alma contra os golpes surdos da coexistência com os outros.



[316]

Um quietismo estético da vida, pelo qual consigamos que os insultos e as humilhações, que a vida e os viventes nos infligem, não cheguem a mais que a uma periferia desprezível da sensibilidade, ao recinto externo da alma consciente.

Todos temos por onde sermos desprezíveis. Cada um de nós traz consigo um crime feito ou o crime que a alma lhe pede para fazer.



[317]

Uma das minhas preocupações constantes é o compreender como é que outra gente existe, como é que há almas que não sejam a minha, consciências estranhas à minha consciência que, por ser consciência, me parece ser a única. Compreendo bem que o homem que está diante de mim, e me fala com palavras iguais às minhas, e me faz gestos que são como eu faço ou poderia fazer, seja de algum modo meu semelhante. O mesmo, porém, me sucede com as gravuras que sonho das ilustrações, com as personagens que vejo dos romances, com as pessoas dramáticas que no palco passam através dos atores que as figuram.

Ninguém, suponho, admite verdadeiramente a existência real de outra pessoa. Pode conceder que essa pessoa seja viva, que sinta e pense como ele; mas haverá sempre um elemento anônimo de diferença, uma desvantagem materializada. Há figuras de tempos idos, imagens espíritos em livros, que são para nós realidades maiores que aquelas indiferenças encarnadas que falam conosco por cima dos balcões, ou nos olham por acaso nos elétricos, ou nos roçam, transeuntes, no acaso morto das ruas. Os outros não são para nós mais que paisagem, e, quase sempre, paisagem invisível de rua conhecida.

Tenho por mais minhas, com maior parentesco e intimidade, certas figuras que estão escritas em livros, certas imagens que conheci de estampas, do que muitas pessoas, a que chamam reais, que são dessa inutilidade metafísica chamada carne e osso. E “carne e OSSO”, de fato, as descreve bem: parecem coisas cortadas postas no exterior marmóreo de um talho, mortes sangrando como vidas, pernas e costeletas do Destino.

Não me envergonho de sentir assim porque já vi que todos sentem assim. O que parece haver de desprezo entre homem e homem, de indiferente que permite que se mate gente sem que se sinta que se mata, como entre os assassinos, ou sem que se pense que se está matando, como entre os soldados, é que ninguém presta a devida atenção ao fato, parece que abstruso, de que os outros são almas também.

Em certos dias, em certas horas, trazidas até mim por não sei que brisa, abertas a mim por o abrir de não sei que porta, sinto de repente que o merceeiro da esquina é um ente espiritual, que o marçano, que neste momento se debruça à porta sobre o saco de batatas, é, verdadeiramente, uma alma capaz de sofrer.

Quando ontem me disseram que o empregado da tabacaria se tinha suicidado, tive uma impressão de mentira. Coitado, também existia! Tínhamos esquecido isso, nós todos, nós todos que o conhecíamos do mesmo modo que todos que o não conheceram. Amanhã esquecê-lo-emos melhor. Mas que havia alma, havia, para que se matasse. Paixões? Angústias? Sem dúvida... Mas a mim, como à humanidade inteira, há só a memória de um sorriso parvo por cima de um casaco de mescla, sujo, e desigual nos ombros. É quanto me resta, a mim, de quem tanto sentiu que se matou de sentir, porque, enfim, de outra coisa se não deve matar alguém... Pensei uma vez, ao comprar-lhe cigarros, que encalveceria cedo. Afinal não teve tempo para encalvecer. É uma das memórias que me restam dele. Que outra me haveria de restar se esta, afinal, não é dele mas de um pensamento meu?

Tenho subitamente a visão do cadáver, do caixão em que o meteram, da cova, inteiramente alheia, a que o haviam de ter levado. E vejo, de repente, que o caixeiro da tabacaria era, em certo modo, casaco torto e tudo, a humanidade inteira.

Foi só um momento. Hoje, agora, claramente, como homem que sou, ele morreu. Mais nada.

Sim, os outros não existem... É para mim que este poente estagna, pesadamente alado, as suas cores nevoentas e duras. Para mim, sob o poente, treme, sem que eu veja que corre, o grande rio. Foi feito para mim este largo aberto sobre o rio cuja maré chega. Foi enterrado hoje na vala comum o caixeiro da tabacaria? Não é para ele o poente de hoje. Mas, de o pensar, e sem que eu queira, também deixou de ser para mim...



[318]

barcos que passam na noite e se nem saúdam nem conhecem.



[319]

Reconheço hoje que falhei; só pasmo, às vezes, de não ter previsto que falharia. Que havia em mim que prognosticasse um triunfo? Eu não tinha a força cega dos vencedores ou a visão certa dos loucos... Era lúcido e triste como um dia frio.

As coisas nítidas confortam, e as coisas ao sol confortam. Ver passar a vida sob um dia azul compensa-me de muito. Esqueço indefinidamente, esqueço mais do que podia lembrar. O meu coração translúcido e aéreo penetra-se da suficiência das coisas, e olhar basta-me carinhosamente. Nunca eu fui outra coisa que uma visão incorpórea, despida de toda a alma salvo um vago ar que passou e que via.

Tenho elementos espirituais de boêmio, desses que deixam a vida ir como uma coisa que se escapa das mãos e a tal hora em que o gesto de a obter dorme na mera idéia de fazê-lo. Mas não tive a compensação exterior do espírito boêmio – o descuidado fácil das emoções imediatas e abandonadas. Nunca fui mais que um boêmio isolado, o que é um absurdo; ou um boêmio místico, o que é uma coisa impossível.

Certas horas-intervalos que tenho vivido, horas perante a Natureza, esculpidas na ternura do isolamento, ficar-me-ão para sempre como medalhas. Nesses momentos esqueci todos os meus propósitos de vida, todas as minhas direções desejadas. Gozei não ser nada com uma plenitude de bonança espiritual, caindo no regaço azul das minhas aspirações. Não gozei nunca, talvez, uma hora indelével, isenta de um fundo espiritual de falência e de desânimo. Em todas as minhas horas libertas uma dor dormia, floria vagamente, por detrás dos muros da minha consciência, em outros quintais; mas o aroma e a própria cor dessas flores tristes atravessavam intuitivamente os muros, e o lado de lá deles, onde floriam as rosas, nunca deixava de ser, no mistério confuso do meu ser, um lado de cá esbatido na minha sonolência de viver.

Foi num mar interior que o rio da minha vida findou. À roda do meu solar sonhado todas as árvores estavam no outono. Esta paisagem circular é a coroa-de-espinhos da minha alma. Os momentos mais felizes da minha vida foram sonhos, e sonhos de tristeza, e eu via-me nos lagos deles como um Narciso cego, que gozasse a frescura próximo da água, sentindo-se debruçado nela, por uma visão anterior e noturna, segredada às emoções abstratas, vivida nos recantos da imaginação com um cuidado materno em preferir-se.

Os teus colares de pérolas fingidas amaram comigo as minhas horas melhores. Eram cravos as flores preferidas, talvez porque não significavam requintes. Os teus lábios festejavam sobriamente a ironia do seu próprio sorriso. Compreendias bem o teu destino? Era por o conheceres sem que o compreendesses que o mistério escrito na tristeza dos teus olhos sombreara tanto os teus lábios desistidos. A nossa Pátria estava demasiado longe para rosas. Nas cascatas dos nossos jardins a água era pelúcida de silêncios. Nas pequenas cavidades rugosas das pedras, por onde a água escolhia, havia segredos que tivéramos quando crianças, sonhos do tamanho parado dos nossos soldados de chumbo, que podiam ser postos nas pedras da cascata, na execução estática duma grande ação militar, sem que faltasse nada aos nossos sonhos, nem nada tardasse às nossas suposições.

Sei que falhei. Gozo a volúpia indeterminada da falência como quem dá um apreço exausto a uma febre que o enclausura.

Tive um certo talento para a amizade, mas nunca tive amigos, quer porque eles me faltassem, quer porque a amizade que eu concebera fora um erro dos meus sonhos. Vivi sempre isolado, e cada vez mais isolado, quanto mais dei por mim.



[320]

Depois que os últimos calores do estio deixavam de ser duros no sol baço, começava o outono antes que viesse, numa leve tristeza, prolixamente indefinida, que parecia uma vontade de não sorrir do céu. Era um azul umas vezes mais claro, outras mais verde, da própria ausência de substância da cor alta; era uma espécie de esquecimento nas nuvens, púrpuras diferentes e esbatidas; era, não já um torpor, mas um tédio, em toda a solidão quieta por onde nuvens atravessam.

A entrada do verdadeiro outono era depois anunciada por um frio dentro do não-frio do ar, por um esbater-se das cores que ainda se não haviam esbatido, por qualquer coisa de penumbra e de afastamento no que havia sido o tom das paisagens e o aspecto disperso das coisas. Nada ia ainda morrer, mas tudo, como que num sorriso que ainda faltava, se virava em saudade para a vida.

Vinha, por fim, o outono certo: o ar tornava-se frio de vento; soavam folhas num tom seco, ainda que não fossem folhas secas; toda a terra tomava a cor e a forma impalpável de um paul incerto. Descobria-se o que fora sorriso último, num cansaço de pálpebras, numa indiferença de gestos. E assim tudo quanto sente, ou supomos que sente, apertava, íntima, ao peito a sua própria despedida. Um som de redemoinho num átrio flutuava através da nossa consciência de outra coisa qualquer. Aprazia convalescer para sentir verdadeiramente a vida.

Mas as primeiras chuvas de inverno, vindas ainda no outono já duro, lavavam estas meias tintas como sem respeito. Ventos altos chiando em coisas paradas, barulhando coisas presas, arrastando coisas móveis, erguiam, entre os brados irregulares da chuva, palavras ausentes de protesto anônimo, sons tristes e quase raivosos de desespero sem alma.

E por fim o outono cessava, a frio e cinzento. Era um outono de inverno o que vinha agora, um pó tornado lama de tudo, mas, ao mesmo tempo, qualquer coisa do que o frio do inverno traz de bom – verão duro findo, primavera por chegar, outono definindo-se em inverno enfim. E no ar alto, por onde os tons baços já não lembravam nem calor nem tristeza, tudo era propício à noite e à meditação indefinida.

Assim era tudo para mim antes que o pensasse. Hoje, se o escrevo, é porque o lembro. O outono que tenho é o que perdi.



[321]

A oportunidade é como o dinheiro, que, aliás, não é mais que uma oportunidade. Para quem age, a oportunidade é um episódio da vontade, e a vontade não me interessa. Para quem, como eu, não age, a oportunidade é o canto da falta de sereias. Tem que ser desprezado com volúpia, arrumado alto para nenhum uso.

Ter ocasião de... Nesse campo se disporá a estátua da renúncia.

Ó largos campos ao sol, o espectador, por quem só sois vivos, contempla-vos da sombra.

O álcool das grandes palavras e das largas frases que como ondas erguem a respiração do seu ritmo e se desfazem sorrindo, na ironia das cobras da espuma, na magnificência triste das penumbras.



[322]

Por fácil que seja, todo o gesto representa a violação de um segredo espiritual. Todo o gesto é um ato revolucionário; um exílio, talvez, da verdadeira dos nossos propósitos.

A ação é uma doença do pensamento, um cancro da imaginação. Agir é exilar-se. Toda a ação é incompleta e imperfeita. O poema que eu sonho não tem falhas senão quando tento realizá-lo. No mito de Jesus está escrito isto; Deus, ao tornar-se homem, não pode acabar senão pelo martírio. O supremo sonhador tem por filho o martírio supremo.

As sombras rotas das folhagens, o canto trêmulo das aves, os braços estendidos dos rios, trepidando ao sol o seu luzir fresco, as verduras, as papoulas, e a simplicidade das sensações – ao sentir isto, sinto dele saudades, como se ao senti-lo o não sentisse.

As horas, como um carro ao entardecer, regressam chiando pelas sombras dos meus pensamentos. Se ergo os olhos de sobre o meu pensamento, elas ardem-me do espetáculo do mundo.

Para realizar um sonho é preciso esquecê-lo, distrair dele a atenção. Por isso realizar é não realizar. A vida está cheia de paradoxos como as rosas de espinhos.

Eu desejaria fazer a apoteose de uma incoerência nova, que ficasse sendo como que a constituição negativa da nova anarquia das almas. Compilar um digesto dos meus sonhos pareceu-me sempre que seria útil à humanidade. Por isso mesmo me abstive de o tentar. A idéia de que o que eu fazia pudesse ser aproveitável magoou-me, secou-me para mim.

Tenho quintas nos arredores da vida. Passo ausências de cidade da minha ação entre as árvores e as flores do meu devaneio. Ao meu retiro verde nem chegam os ecos da vida dos meus gestos. Durmo a minha memória como procissões infinitas. Nos cálices da minha meditação só bebo o sorriso do vinho louro; só o bebo com os olhos, fechando-os, e a Vida passa como uma vela longínqua.

Os dias de sol sabem-me ao que eu não tenho. O céu azul, e as nuvens brancas, as árvores, a flauta que ali falta – éclogas incompletas pelo estremecimento dos ramos... Tudo isto é a harpa muda por onde eu roço a leveza dos meus dedos.

A academia vegetal dos silêncios... teu nome soando como as papoulas... os tanques... o meu regresso... o padre louco que endoideceu na missa. Estas recordações são dos meus sonhos... Não fecho os olhos mas não vejo nada... Não estão aqui as coisas que vejo... Águas...

Numa confusão de emaranhamentos, o verdor das árvores é parte do meu sangue. Bate-me a vida no coração distante. Eu não fui destinado à realidade, e a vida quis vir ter comigo.

A tortura do destino! Quem sabe se morrerei amanhã! Quem sabe se não vai acontecer-me hoje qualquer coisa de terrível para a minha alma!... Às vezes, quando penso nestas coisas, apavora-me a tirania suprema que nos faz ter de olhar puros não sabendo de que acontecimento a incerteza de mim vai ao encontro.



[323]

... a chuva caía ainda triste, mas mais branda, como num cansaço universal; não havia relâmpagos, e apenas, de vez em quando, com o som de já longe, um trovão curto resmungava duro, e às vezes como que se interrompia, cansado também. Como que subitamente, a chuva abrandou mais ainda. Um dos empregados abriu as janelas para a Rua dos Douradores. Um ar fresco, com restos mortos de quente, insinuou-se na sala grande. A voz do patrão Vasques soou alta no telefone do gabinete: “Então, ainda está a falar?” E houve um som de fala seca e à parte – comentário, obsceno  (adivinha-se), à menina longínqua.



[324]

Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos.

Atingirás assim o ponto supremo da abstenção sonhadora, onde os senti-los se mesclam, os sentimentos se extravasam, as idéias se entrepenetram. Assim como as cores e os sons sabem uns a outros, os ódios sabem a amores, e as coisas concretas a abstratas, e as abstratas a concretas. Quebram-se os laços que, ao mesmo tempo que ligavam tudo, separavam tudo, isolando cada elemento. Tudo se funde e confunde.



[325]

Ficções do interlúdio, cobrindo coloridamente o marasmo e a desídia  da nossa íntima descrença.



[326]

de resto eu não sonho, eu não vivo, salvo a vida real. Todas as naus são naus logo que esteja em nós o poder de as sonhar. O que mata o sonhador é não viver quando sonha; o que fere o agente é não sonhar quando vive. Eu fundi numa cor una de felicidade a beleza do sonho e a realidade da vida. Por mais que possuamos um sonho nunca se possui um sonho tanto como se possui o lenço que se tem na algibeira, ou, se quisermos, como se possui a nossa própria carne. Por mais que se viva a vida em plena, desmesurada e triunfante ação, nunca desaparecem o do contato com os outros, o tropeçar em obstáculos, ainda que mínimos, o sentir o tempo decorrer.

Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.

O Universo, a Vida – seja isso real ou ilusão – é de todos, todos podem ver o que eu vejo, e possuir o que eu possuo – ou, pelo menos, pode conceber-se vendo-o e possuindo e isso é

Mas o que eu sonho ninguém pode ver senão eu, ninguém a não ser eu possuir. E se do mundo exterior o meu vê-lo difere de como outros o vêem, isso vem de que do sonho meu eu ponho em vê-lo, sem querer, do que do sonho meu se cola a meus olhos e ouvidos.



[327]

Na grande claridade do dia o sossego dos sons é de ouro também. Há suavidade no que acontece. Se me dissessem que havia guerra, eu diria que não havia guerra. Num dia assim nada pode haver que pese sobre não haver senão suavidade.



[328]

Junta as mãos, põe-as entre as minhas e escuta-me, ó meu amor.

Eu quero, falando numa voz suave e embaladora, como a dum confessor que aconselha, dizer-te o quanto a ânsia de atingir fica aquém do que atingimos.

Quero rezar contigo, a minha voz com a tua atenção, a litania da desesperança.

Não há obra de artista que não pudera ter sido mais perfeita. Lido verso por verso, o maior poema poucos  versos tem que não pudessem ser melhores, poucos  episódios que não pudessem ser mais intensos, e nunca o seu conjunto é tão perfeito que o não pudesse ser muitíssimo  mais.

Ai do artista que repara para isto! que um dia pensa nisto! Nunca mais o seu trabalho é alegria, nem o seu sono sossego. É moço sem mocidade e envelhece descontente.

E para quê exprimir? O pouco que se diz melhor fora ficar não dito.

Se eu bem pudesse compenetrar-me realmente de quanto a renúncia é bela, que dolorosamente feliz para sempre que eu seria!

Porque tu não amas o que eu digo com os ouvidos com que eu me ouço dizê-lo. Eu próprio se me ouço falar alto, os ouvidos com que me ouço falar alto não me escutam do mesmo modo que o ouvido íntimo com que me ouço pensar palavras. Se eu me erro, ouvindo-me, e tenho que perguntar, tantas vezes, a mim próprio o que quis dizer, os outros quanto me não entenderão!

De quão complexas ininteligências não é feita a compreensão dos outros de nós.

A delícia de se ver compreendido, não a pode ter quem se quer não compreendido, porque só aos complexos e incompreendidos isso acontece; e os outros, os simples, aqueles que os outros podem compreender – esses nunca têm o desejo de serem compreendidos.



[329]

Pensaste já, ó Outra, quão invisíveis somos uns para os outros? Meditaste já em quanto nos desconhecemos? Vemo-nos e não nos vemos. Ouvimo-nos e cada um escuta apenas uma voz que está dentro de si.

As palavras dos outros são erros do nosso ouvir, naufrágios do nosso entender. Com que confiança cremos no nosso sentido das palavras dos outros. Sabem-nos a morte, volúpias que outros põem em palavras. Lemos volúpia e vida no que outros deixam cair dos lábios sem intenção de dar sentido profundo.

A voz dos regatos que interpretas, pura explicadora, a voz das árvores onde pomos sentido no seu murmúrio – ah, meu amor ignoto, quanto tudo isso é nós e fantasias tudo de cinza que se escoa pelas grades da nossa cela!



[330]

Visto que talvez nem tudo seja falso, que nada, ó meu amor, nos cure do prazer quase-espasmo de mentir.

Requinte último! Perversão máxima! A mentira absurda tem todo o encanto do perverso com o último e maior encanto de ser inocente. A perversão de propósito inocente – quem excederá, ó, o requinte máximo disto? A perversão que nem aspira a dar-nos gozo, que nem tem a fúria de nos causar dor, que cai para o chão entre o prazer e a dor, inútil e absurda como um brinquedo mal feito com que um adulto quisesse divertir-se!

Não conheces, ó Deliciosa, o prazer de comprar coisas que não são precisas? Sabes o sabor aos caminhos que, se os tomássemos esquecidos, era por erro que os tomaríamos? Que ato humano tem uma cor tão bela como os atos espúrios – que mentem à sua própria natureza e desmentem o que lhes é a intenção?

A sublimidade de desperdiçar uma vida que podia ser útil, de nunca executar uma obra que por força seria bela, de abandonar a meio caminho a estrada certa da vitória!

Ah, meu amor, a glória das obras que se perderam e nunca se acharão, dos tratados que são títulos apenas hoje, das bibliotecas que arderam, das estátuas que foram partidas.

Que santificados de Absurdo os artistas que queimaram uma obra muito bela, daqueles que, podendo fazer uma obra bela, de propósito a fizeram imperfeita, daqueles poetas máximos do Silêncio que, reconhecendo que poderiam fazer obra de todo perfeita, preferiram coroá-la de nunca a fazer. (Se fora imperfeita, vá.)

Quão mais bela a Gioconda desde que a não pudéssemos ver! E se quem a roubasse a queimasse, quão artista seria, que maior artista que aquele que a pintou!

Por que é bela a arte? Porque é inútil. Por que é feia a vida? Porque é toda fins e propósitos e intenções. Todos os seus caminhos são para ir de um ponto para o outro. Quem nos dera o caminho feito de um lugar donde ninguém parte para um lugar para onde ninguém vai! Quem desse a sua vida a construir uma estrada começada no meio de um campo e indo ter ao meio de um outro; que, prolongada, seria útil, mas que ficou, sublimemente, só o meio de uma estrada.

A beleza das ruínas? O não servirem já para nada.

A doçura do passado? O recordá-lo, porque recordá-lo é torná-lo presente, e ele nem o é, nem o pode ser – o absurdo, meu amor, o absurdo.

E eu que digo isto – por que escrevo eu este livro? Porque o reconheço imperfeito. Calado seria a perfeição; escrito, imperfeiçoa-se; por isso o escrevo.

E, sobretudo, porque defendo a inutilidade, o absurdo, – eu escrevo este livro para mentir a mim próprio, para trair a minha própria teoria.

E a suprema glória disto tudo, meu amor, é pensar que talvez isto não seja verdade, nem eu o creia verdadeiro.

E quando a mentira começar a dar-nos prazer, falemos a verdade para lhe mentirmos. E quando nos causar angústia, paremos, para que o sofrimento nos não signifique nem perversamente prazer...



[331]

Doem-me a cabeça e o universo. As dores físicas, mais nitidamente dores que as morais, desenvolvem, por um reflexo no espírito, tragédias incontidas nelas. Trazem uma impaciência de tudo que, como é de tudo, não exclui nenhuma das estrelas.

Não comungo, não comunguei nunca, não poderei, suponho, alguma vez comungar aquele conceito bastardo pelo qual somos, como almas, conseqüências de uma coisa material chamada cérebro, que existe, por nascença, dentro de outra coisa material chamada crânio. Não posso ser materialista, que é o que, creio, se chama àquele conceito, porque não posso estabelecer uma relação nítida – uma relação visual, direi – entre uma massa visível de matéria cinzenta, ou de outra cor qualquer, e esta coisa eu que por detrás do meu olhar vê os céus e os pensa, e imagina céus que não existem. Mas, ainda que nunca possa cair no abismo de supor que uma coisa possa ser outra só porque estão no mesmo lugar, como a parede e a minha sombra nela, ou que depender a alma do cérebro seja mais que depender eu, para o meu trajeto, do veículo em que vou, creio, todavia, que há entre o que em nós é só espírito e o que em nós é espírito do corpo uma relação de convívio em que podem surgir discussões. E a que surge vulgarmente é a de a pessoa mais ordinária incomodar a que o é menos.

Dói-me a cabeça hoje, e é talvez do estômago que me dói. Mas a dor, uma vez sugerida do estômago à cabeça, vai interromper as meditações que tenho por detrás de ter cérebro. Quem me tapa os olhos não me cega, porém impede-me de ver. E assim agora, porque me dói a cabeça, acho sem valia nem nobreza o espetáculo, neste momento monótono e absurdo, do que aí fora mal quero ver como mundo. Dói-me a cabeça, e isto quer dizer que tenho consciência de uma ofensa que a matéria me faz, e que, porque como todas as ofensas, me indigna, me predispõe para estar mal com toda a gente, incluindo a que está próxima porém me não ofendeu.

O meu desejo é de morrer, pelo menos temporariamente, mas isto, como disse, só porque me dói a cabeça. E neste momento, de repente, lembra-me com que melhor nobreza um dos grandes prosadores diria isto. Desenrolaria, período a período, a mágoa anônima do mundo; aos seus olhos imaginadores de parágrafos surgiriam, diversos, os dramas humanos que há na terra, e através do latejar das fontes febris erguer-se-ia no papel toda uma metafísica da desgraça. Eu, porém, não tenho nobreza estilística. Dói-me a cabeça porque me dói a cabeça. Dói-me o universo porque a cabeça me dói. Mas o universo que realmente me dói não é o verdadeiro, o que existe porque não sabe que existo, mas aquele, meu de mim, que, se eu passar as mãos pelos cabelos, me faz parecer sentir que eles sofrem todos só para me fazerem sofrer.



[332]

O pasmo que me causa a minha capacidade para a angústia. Não sendo, de natureza, um metafísico, tenho passado dias de angústia aguda, física mesmo, com a indecisão dos problemas metafísicos e religiosos... Vi depressa que o que eu tinha por a solução do problema religioso era resolver um problema emotivo em termos da razão.



[333]

Nenhum problema tem solução. Nenhum de nós desata o nó górdio; todos nós ou desistimos ou o cortamos. Resolvemos bruscamente, com o sentimento, os problemas da inteligência, e fazemo-lo ou por cansaço de pensar, ou por timidez de tirar conclusões, ou pela necessidade absurda de encontrar um apoio, ou pelo impulso gregário de regressar aos outros e à vida.

Como nunca podemos conhecer todos os elementos de uma questão, nunca a podemos resolver.

Para atingir a verdade faltam-nos dados que bastem, e processos intelectuais que esgotem a interpretação desses dados.



[334]

Passaram meses sobre o último que escrevi. Tenho estado num sono do entendimento pelo qual tenho sido outro na vida. Uma sensação de felicidade translata tem-me sido freqüente. Não tenho existido, tenho sido outro, tenho vivido sem pensar.

Hoje, de repente, voltei ao que sou ou me sonho. Foi um momento de grande cansaço, depois de um trabalho sem relevo. Pousei a cabeça contra as mãos, fincados os cotovelos na mesa alta inclinada. E, fechados os olhos, retrovei-me.

Num sono falso longínquo relembrei tudo quanto fora, e foi com uma nitidez de paisagem vista que se me ergueu de repente, antes ou depois de tudo, o lado largo da quinta velha, de onde, a meio da visão, a eira se erguia vazia.

Senti imediatamente a inutilidade da vida. Ver, sentir, lembrar, esquecer – tudo isso se me confundiu, numa vaga dor nos cotovelos, com o murmúrio incerto da rua próxima e os pequenos ruídos do trabalho sossegado no escritório quedo. Quando, depostas as mãos sobre a mesa ao alto, lancei sobre o que lá via o olhar que deveria ser de um cansaço cheio de mundos mortos, a primeira coisa que vi, com ver, foi uma mosca varejeira (aquele vago zumbido que não era do escritório!) pousada em cima do tinteiro. Contemplei-a do fundo do abismo, anônimo e desperto. Ela tinha tons verdes de azul preto e era lustrosa de um nojo que não era feio. Uma vida!

Quem sabe para que forças supremas, deuses ou demônios da Verdade em cuja sombra erramos, não serei senão a mosca lustrosa que pousa um momento diante deles? Reparo fácil? Observação já feita? Filosofia sem pensamento? Talvez, mas eu não pensei: senti. Foi carnalmente, diretamente, com um horror profundo e escuro, que fiz a comparação risível. Fui mosca quando me comparei à mosca. Senti-me mosca quando supus que me o senti. E senti-me uma alma à mosca, dormi-me mosca, senti-me fechado mosca. E o horror maior é que no mesmo tempo me senti eu. Sem querer, ergui os olhos para a direção do teto, não baixasse sobre mim uma régua suprema, a esmagar-me, como eu poderia esmagar aquela mosca. Felizmente, quando baixei os olhos, a mosca, sem ruído que eu ouvisse, desaparecera. O escritório involuntário estava outra vez sem filosofia.



[335]

“Sentir é uma maçada.” Estas palavras casuais de não sei que conviva à conversa de uns minutos, ficou-me sempre brilhando no chão da memória. A própria forma plebéia da frase lhe dá sal e pimenta.



[336]

Não sei quantos terão contemplado, com o olhar que merece, uma rua deserta com gente nela. Já este modo de dizer parece querer dizer qualquer outra coisa, e efetivamente a quer dizer. Uma rua deserta não é uma rua onde não passa ninguém, mas uma rua onde os que passam, passam nela como se fosse deserta. Não há dificuldade em compreender isto desde que se o tenha visto: uma zebra é impossível para quem não conheça mais que um burro.

As sensações ajustam-se, dentro de nós, a certos graus e tipos da compreensão delas. Há maneiras de entender que têm maneiras de ser entendidas.

Há dias em que sobe em mim, como que da terra alheia à cabeça própria, um tédio, uma mágoa, uma angústia de viver que só me não parece insuportável porque de fato a suporto. E um estrangulamento da vida em mim mesmo, um desejo de ser outra pessoa em todos os poros, uma breve notícia do fim.



[337]

O que tenho sobretudo é cansaço, e aquele desassossego que é gêmeo do cansaço quando este não tem outra razão de ser senão o estar sendo. Tenho um receio íntimo dos gestos a esboçar, uma timidez intelectual das palavras a dizer. Tudo me parece antecipadamente frusto. O insuportável tédio de todas estas caras, alvares de inteligência ou de falta dela, grotescas até à náusea de felizes ou infelizes, horrorosas porque existem, maré separada de coisas vivas que me são alheias...



[338]

Sempre me tem preocupado, naquelas horas ocasionais de desprendimento em que tomamos consciência de nós mesmos como indivíduos que somos outros para os outros, a imaginação da figura que farei fisicamente, e até moralmente, para aqueles que me contemplam e me falam, ou todos os dias ou por acaso. Estamos todos habituados a considerar-nos como primordialmente realidades mentais, e aos outros como diretamente realidades físicas; vagamente nos consideramos como gente física, para efeitos nos olhos dos outros; vagamente consideramos os outros como realidades mentais, mas só no amor ou no conflito tomamos verdadeira consciência de que os outros têm sobretudo alma, como nós para nós. Perco-me, por isso, às vezes, numa imaginação fútil de que espécie de gente serei para os que me vêem, como é a minha voz, que tipo de figura deixo escrita na memória involuntária dos outros, de que maneira os meus gestos, as minhas palavras, a minha vida aparente, se gravam nas retinas da interpretação alheia. Não consegui nunca ver-me de fora. Não há espelho que nos dê a nós como foras, porque não há espelho que nos tire de nós mesmos. Era precisa outra alma, outra colocação do olhar e do pensar. Se eu fosse ator prolongado de cinema, ou gravasse em discos audíveis a minha voz alta, estou certo que do mesmo modo ficaria longe de saber o que sou do lado de lá, pois, queira o que queira, grave-se o que de mim se grave, estou sempre aqui dentro, na quinta de muros altos da minha consciência de mim.

Não sei se os outros serão assim, se a ciência da vida não consistirá essencialmente em ser tão alheio a si mesmo que instintivamente se consegue um alheamento e se pode participar da vida como estranho à consciência; ou se os outros, mais ensimesmados do que eu, não serão de todo a bruteza de não serem senão eles, vivendo exteriormente por aquele milagre pelo qual as abelhas formam sociedades mais organizadas que qualquer nação, e as formigas comunicam entre si com uma fala de antenas mínimas que excede nos resultados a nossa complexa ausência de nos entendermos.

A geografia da consciência da realidade é de uma grande complexidade de costas, acidentadíssima de montanhas e de lagos. E tudo me parece, se medito demais, uma espécie de mapa como o do Pays du Tendre ou das Viagens de Gulliver, brincadeira da exatidão inscrita num livro irônico ou fantasista para gáudio de entes superiores, que sabem onde é que as terras são terras.

Tudo é complexo para quem pensa, e sem dúvida o pensamento o torna mais complexo por volúpia própria. Mas quem pensa tem a necessidade de justificar a sua abdicação com um vasto programa de compreender, exposto, como as razões dos que mentem, com todos os pormenores excessivos que descobrem, com o espalhar da terra, a raiz da mentira.

Tudo é complexo, ou sou eu que o sou. Mas, de qualquer modo, não importa porque, de qualquer modo, nada importa. Tudo isto, todas estas considerações extraviadas da rua larga, vegeta nos quintais dos deuses exclusos como trepadeiras longe das paredes. E sorrio, na noite em que concluo sem fim estas considerações sem engrenagem, da ironia vital que as faz surgir de uma alma humana, órfã, de antes dos astros, das grandes razões do Destino.



[339]

Paira-me à superfície do cansaço qualquer coisa de áureo que há sobre as águas quando o sol findo as abandona. Vejo-me como ao lago que imaginei, e o que vejo nesse lago sou eu. Não sei como explique esta imagem, ou este símbolo, ou este eu em que me figuro. Mas o que tenho por certo é que vejo, como se de fato visse, um sol por trás de montes, dando raios perdidos sobre o lago que os recebe a ouro escuro.

Um dos malefícios de pensar é ver quando se está pensando. Os que pensam com o raciocínio estão distraídos, os que pensam com a emoção estão dormindo, os que pensam com a vontade estão mortos. Eu, porém, penso com a imaginação, e tudo quanto deveria ser em mim ou razão, ou mágoa, ou impulso, se me reduz a qualquer coisa indiferente e distante, como este lago porto entre rochedos onde o último do sol paira desalongadamente.

Porque parei, estremeceram as águas. Porque refleti, o sol recolheu-se. Cerro os olhos lentos e cheios de sono, e não há dentro de mim senão uma região lacustre onde a noite começa a deixar de ser dia num reflexo castanho escuro de águas de onde as algas surgem.

Porque escrevi, nada disse. Minha impressão é que o que existe é sempre em outra região, além de montes, e que há grandes viagens por fazer se tivermos alma com que ter passos.

Cessei, como o sol na minha paisagem. Não fica, do que foi dito ou visto, senão uma noite já fechada, cheia de brilho morto de lagos, numa planície sem patos bravos, morta, fluida, úmida e sinistra.



[340]

Não acredito na paisagem. Sim. Não o digo porque creia no “a paisagem é um estado de alma” do Amiel, um dos bons momentos verbais da mais insuportável interiorice. Digo-o porque não creio.



[341]

Na minha alma ignóbil e profunda registro, dia a dia, as impressões que formam a substância externa da minha consciência de mim. Ponho-as em palavras vadias, que me desertam desde que as escrevo, e erram, independentes de mim, por encostas e relvados de imagens, por áleas de conceitos, por azinhagas de confusões. Isto de nada me serve, pois nada me serve de nada. Mas desapoquento-me escrevendo, como quem respira melhor sem que a doença haja passado.

Há quem, estando distraído, escreva riscos e nomes absurdos no mata-borrão de cantos entalados. Estas páginas são os rabiscos da minha inconsciência intelectual de mim. Traço-as numa modorra de me sentir, como um gato ao sol, e releio-as, por vezes, com um vago pasmo tardio, como o de me haver lembrado de uma coisa que sempre esquecera.

Quando escrevo, visito-me solenemente. Tenho salas especiais, recordadas por outrem em interstícios da figuração, onde me deleito analisando o que não sinto, e me examino como a um quadro na sombra.

Perdi, antes de nascer, o meu castelo antigo. Foram vendidas, antes que eu fosse, as tapeçarias [d]o meu palácio ancestral. O meu solar de antes da vida caiu em ruína, e só em certos momentos, quando o luar nasce em mim de sobre os juncos do rio, me esfria a saudade dos lados de onde o resto desdentado das paredes recorra negro contra o céu de azul escuro esbranquiçado a amarelo de leite.

Distingo-me a esfinges. E do regaço da rainha que me falta cai, como um episódio do bordado inútil, o novelo esquecido da minha alma. Rola para debaixo do contador com embutidos, e há aquilo em mim que o segue como olhos até que se perde num grande horror de túmulo e de fim.



[342]

Nunca durmo: vivo e sonho, ou antes, sonho em vida e a dormir, que também é vida. Não há interrupção em minha consciência: sinto o que me cerca se não durmo ainda, ou se não durmo bem; entro logo a sonhar desde que deveras durmo. Assim, o que sou é um perpétuo desenrolamento de imagens, conexas ou desconexas, fingindo sempre de exteriores, umas postas entre os homens e a luz, se estou desperto, outras postas entre os fantasmas e a sem-luz que se vê, se estou dormindo. Verdadeiramente, não sei como distinguir uma coisa da outra, nem ouso afirmar se não durmo quando estou desperto, se não estou a despertar quando durmo.

A vida é um novelo que alguém emaranhou. Há um sentido nela, se estiver desenrolada e posta ao comprido, ou enrolada bem. Mas, tal como está, é um problema sem novelo próprio, um embrulhar-se sem onde.

Sinto isto, que depois escreverei, pois que vou já sonhando as frases a dizer, quando, através da noite de meio-dormir, sinto, junto com as paisagens de sonhos vagos, o ruído da chuva lá fora, a tornarmos mais vagos ainda. São adivinhas do vácuo, trêmulas de abismo, e através delas se escoa, inútil, a plangência externa da chuva constante, minúcia abundante da paisagem do ouvido. Esperança? Nada. Do céu invisível desce em som a mágoa água que vento alça. Continuo dormindo.

Era, sem dúvida, nas alamedas do parque que se passou a tragédia de que resultou a vida. Eram dois e belos e desejavam ser outra coisa; o amor tardava-lhes no tédio do futuro, e a saudade do que haveria de ser vinha já sendo filha  do amor que não tinham tido. Assim, ao luar dos bosques próximos, pois através deles se coava a lua, passeavam, mãos dadas, sem desejos nem esperanças, através do deserto próprio das áleas abandonadas. Eram crianças inteiramente, pois que o não eram em verdade. De álea em álea, silhuetas entre árvore e árvore, percorriam em papel recortado aquele cenário de ninguém. E assim se sumiram para o lado dos tanques, cada vez mais juntos e separados, e o ruído da vaga chuva que cessa é o dos repuxos de para onde iam. Sou o amor que eles tiveram e por isso os sei ouvir na noite em que não durmo, e também sei viver infeliz.



[343]

Um dia (zig-zag)

Não ter sido Madame de harém! Que pena tenho de mim por me não ter acontecido isso!

Afinal deste dia fica o que de ontem ficou e ficará de amanhã: a ânsia insaciável e inúmera de ser sempre o mesmo e outro.

Por degraus de sonhos e cansaços meus desce da tua irrealidade, desce e vem substituir o mundo.



[344]

Glorificação dos estéreis

Se dentre as mulheres da terra eu vier um dia a colher uma esposa, que a tua prece por mim seja esta – que de qualquer modo ela seja estéril. Mas pede também, se por mim rezares, que eu não venha nunca a tirar para mim  essa esposa suposta.

Só a esterilidade é nobre e digna. Só o matar o que nunca foi é alto  e perverso  e absurdo.



[345]

Eu não sonho possuir-te. Para quê? Era traduzir para plebeu o meu sonho. Possuir um corpo é ser banal. Sonhar possuir um corpo é talvez pior, ainda que seja difícil sê-lo: é sonhar-se banal – horror supremo.

E já que queremos ser estéreis, sejamos também castos, porque nada pode haver de mais ignóbil e baixo do que, renegando da Natureza o que nela é fecundado, guardar vilãmente dela o que nos praz no que renegamos. Não há nobrezas aos bocados.

Sejamos castos como eremitas, puros como corpos sonhados, resignados a ser tudo isto, como freirinhas doidas...

Que o nosso amor seja uma oração... Unge-me de ver-te que eu farei dos meus momentos de te sonhar um rosário onde os meus tédios serão padre-nossos e as minhas angústias ave-marias...

Fiquemos assim eternamente como uma figura de homem em vitral defronte de uma figura de mulher noutro vitral... Entre nós, sombras cujos passos soam frios, a humanidade passando... Murmúrios de rezas, segredos de passarão entre nós... Umas vezes enche-se bem o ar de [...] de incensos. Outras vezes, para este lado e para aquele uma figura de estátua rezará aspersões...

E nós sempre os mesmos vitrais, nas cores quando o Sol nos bata, nas linhas quando a noite caia... Os séculos não tocarão no nosso silêncio vítreo... Lá fora passarão civilizações, escacharão revoltas, turbilhonarão festas, correrão mansos quotidianos povos... E nós, ó meu amor irreal, teremos sempre o mesmo gesto inútil, a mesma existência falsa, e a mesma

Até [que] um dia, no fim de vários séculos de impérios, a Igreja finalmente rua e tudo acabe... Mas nós que não sabemos dela ficaremos ainda, não sei como, não sei em que espaço, não sei por que tempo, vitrais eternos, horas de ingênuo desenho pintado por um qualquer artista que dorme há muito sob um túmulo godo onde dois anjos de mãos postas gelam em mármore a idéia de morte.



[346]

As coisas sonhadas só têm o lado de cá... Não se lhes pode ver o outro lado... Não se pode andar à roda delas... O mal das coisas da vida é que as podemos ir olhando por todos os lados... As coisas de sonho só têm o lado que vemos... Têm amores só puros, como as nossas almas.



[347]

Carta para não mandar

Dispenso-a de comparecer na minha idéia de si.

A sua vida Isso não é o meu amor; é apenas a sua vida.

Amo-a como ao poente ou ao luar, com o desejo de que o momento fique, mas sem que seja meu nele mais que a sensação de tê-lo.



[348]

Nada pesa tanto como o afeto alheio – nem o ódio alheio, pois que o ódio é mais intermitente que o afeto; sendo uma emoção desagradável, tende, por instinto de quem a tem, a ser menos freqüente. Mas tanto o ódio como o amor nos oprime; ambos nos buscam e procuram, nos não deixam sós.

O meu ideal seria viver tudo em romance, repousando na vida ler as minhas emoções, viver o meu desprezo delas. Para quem tenha a imaginação à flor da pele, as aventuras de um protagonista de romance são emoção própria bastante, e mais, pois que são dele e nossas. Não há grande aventura como ter amado Lady Macbeth, com amor verdadeiro e direto; que tem que fazer que[m] assim amou senão, por descanso, não amar nesta vida ninguém?

Não sei que sentido tem esta viagem que fui forçado a fazer, entre uma noite e outra noite, na companhia do universo inteiro. Sei que posso ler para me distrair. Considero a leitura como o modo mais simples de entreter esta, como outra, viagem; e, de vez em quando, ergo os olhos do livro onde estou sentindo verdadeiramente, e vejo, como estrangeiro, a paisagem que foge campos, cidades, homens e mulheres, afeições e saudades –, e tudo isso não é mais para mim do que um episódio do meu repouso, uma distração inerte em que descanso os olhos das páginas demasiado lidas.

Só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos, porque o mais, por estar realizado, pertence ao mundo e a toda a gente. Se realizasse algum sonho, teria ciúmes dele, pois me haveria traído com o ter-se deixado realizar. Realizei tudo quanto quis, diz o débil, e é mentira; a verdade é que sonhou profeticamente tudo quanto a vida realizou dele. Nada realizamos. A vida atira-nos como uma pedra, e nós vamos dizendo no ar, “Aqui me vou mexendo”.

Seja o que for este interlúdio mimado sob o projetor do sol e as lantejoulas das estrelas, não faz mal decerto saber que ele é um interlúdio; se o que está para além das portas do teatro é a vida, viveremos; se é a morte, morreremos, e a peça nada tem com isso.

Por isso nunca me sinto tão próximo da verdade, tão sensivelmente iniciado, como quando nas raras vezes que vou ao teatro ou ao circo: sei então que enfim estou assistindo à perfeita figuração da vida. E os atores e as atrizes, os palhaços e os prestidigitadores são coisas importantes e fúteis, como o sol e a lua, o amor e a morte, a peste, a fome, a guerra na humanidade. Tudo é teatro. Ah, quero a verdade? Vou continuar o romance...



[349]

Amais vil de todas as necessidades – a da confidência, a da confissão. E a necessidade da alma de ser exterior.

Confessa, sim; mas confessa o que não sentes. Livra a tua alma, sim, do peso dos seus segredos, dizendo-os; mas ainda bem que os segredos que digas, nunca os tenhas tido. Mente a ti próprio antes de dizeres essa verdade. Exprimir é sempre errar. Sê consciente: exprimir seja, para ti, mentir.



[350]

Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que ele tem, se tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente, por fora. A das emoções sei também que é falsa: divide, não o tempo, mas a sensação dele. A dos sonhos é errada; neles roçamos o tempo, uma vez prolongadamente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou lento conforme qualquer coisa do decorrer cuja natureza ignoro.

Julgo, às vezes, que tudo é falso, e que o tempo não é mais do que uma moldura para enquadrar o que lhe é estranho. Na recordação, que tenho da minha vida passada, os tempos estão dispostos em níveis e planos absurdos, sendo eu mais jovem em certo episódio dos quinze anos solenes que em outro da infância sentada entre brinquedos.

Emaranha-se-me a consciência se penso nestas coisas. Pressinto um erro em tudo isto; não sei, porém, de que lado está. É como se assistisse a uma sorte de prestidigitação, onde, por ser tal, me soubesse enganado, porém não concebesse qual a técnica, ou a mecânica, do engano.

Chegam-me, então, pensamentos absurdos, que não consigo todavia repelir como absurdos de todo. Penso se um homem que medita devagar dentro de um carro que segue depressa está indo depressa ou devagar. Penso se serão iguais as velocidades idênticas com que caem no mar o suicida e o que se desequilibrou na esplanada. Penso se são realmente sincrônicos os movimentos, que ocupam o mesmo tempo, em os quais fumo um cigarro, escrevo este trecho e penso obscuramente.

De duas rodas no mesmo eixo podemos pensar que há sempre uma que estará mais adiante, ainda que seja frações de milímetro. Um microscópio exageraria este deslocamento até o tornar quase inacreditável, impossível se não fosse real. E por que não há o microscópio de ter razão contra a má vista? São considerações inúteis? Bem o sei. São ilusões da consideração? Concedo. Que coisa, porém, é esta que nos mede sem medida e nos mata sem ser? E é nestes momentos, em que nem sei se o tempo existe, que o sinto como uma pessoa, e tenho vontade de dormir.



[351]

Paciências

As tias velhas dos que as tiveram, nos serões a petróleo das casas vagas na província, entretinham a hora em que a criada dorme ao som crescente da chaleira [...] a fazer paciências com cartas. Tem saudades em mim desse sossego inútil alguém que se coloca no meu lugar. Vem o chá e o baralho velho amontoa-se regular ao canto da mesa. O guarda-louça enorme escurece a sombra, na sala de jantar apenumbrada. Sua de sono a cara da criada apressada lentamente por acabar. Vejo isso tudo em mim com uma angústia e uma saudade independentes de ter relação com qualquer coisa. E, sem querer, ponho-me a considerar qual é o estado de espírito de quem faz paciências com cartas.



[352]

Não é nos largos campos ou nos jardins grandes que vejo chegar a primavera. É nas poucas árvores pobres de um largo pequeno da cidade. Ali a verdura destaca como uma dádiva e é alegre como uma boa tristeza.

Amo esses largos solitários, intercalados entre ruas de pouco trânsito, e eles mesmos sem mais trânsito que as ruas. São clareiras inúteis, coisas que esperam, entre tumultos longínquos. São de aldeia na cidade.

Passo por eles, subo qualquer das ruas suas afluentes, depois desço de novo essa rua, para a eles regressar. Visto do outro lado é diferente, mas a mesma paz deixa dourar de saudade súbita – sol no ocaso – o lado que não vira na ida.

Tudo é inútil, e eu o sinto como tal. Quanto vivi se me esqueceu como se o ouvira distraído. Quanto serei me não lembra como se o tivera vivido e esquecido.

Um ocaso de mágoa leve paira vago em meu torno. Tudo esfria, não porque esfrie, mas porque entrei numa rua estreita e o largo cessou.



[353]

A manhã, meio fria, meio morna, alava-se pelas casas raras das encostas no extremo da cidade. Uma névoa ligeira, cheia de despertar, esfarrapava-se, sem contornos, no adormecimento das encostas. (Não fazia frio, salvo em ter que recomeçar a vida.) E tudo aquilo – toda esta frescura lenta da manhã leve, era análogo a uma alegria que ele nunca pudera ter.

O carro descia lentamente, a caminho das avenidas. À medida que se aproximava do maior aglomeramento das casas, uma sensação de perda tomava-lhe o espírito vagamente. A realidade humana começava a despontar.

Nestas horas matinais, em que a sombra já desapareceu, mas não ainda o seu peso leve, o espírito que se deixa levar pelos incitamentos da hora apetece a chegada e o porto antigo ao sol. Alegraria, não que o instante se fixasse, como nos momentos solenes da paisagem, ou no luar calmo sobre o rio, mas que a vida tivesse sido outra, de modo que este momento pudesse ter um outro sabor que se lhe reconhece mais próprio.

Adelgaçava-se mais a névoa incerta. O sol invadia mais as coisas. Os sons da vida acentuavam-se no arredor.

Seria certo, por uma hora como estas, não chegar nunca à realidade humana para que a nossa vida se destina. Ficar suspenso, entre a névoa e a manhã, imponderavelmente, não em espírito, mas em corpo espiritualizado, em vida real alada, aprazia, mais do que outra coisa, ao nosso desejo de buscar um refúgio, mesmo sem razão para o buscar.

Sentir tudo sutilmente torna-nos indiferentes, salvo para o que se não pode obter – sensações por chegar a uma alma ainda em embrião para elas, atividades humanas congruentes com sentir profundamente, paixões e emoções perdidas entre conseguimentos de outras espécies.

As árvores, no seu alinhamento pelas avenidas, eram independentes de tudo isto.

A hora acabou na cidade, como a encosta do outro lado do rio quando o barco toca no cais. Ele trouxe consigo, enquanto não tocou na margem, a paisagem da outra banda pegada à amurada; ela despegou-se quando se deu o som da amurada a tocar nas pedras. O homem de calças arregaçadas sobre o joelho deitou um grampo ao cabo, e foi definitivo e concludente o seu gesto natural. Terminou metafisicamente na impossibilidade na nossa alma de continuarmos a ter a alegria de uma angústia duvidosa. Os garotos no cais olhavam para nós como para qualquer outra pessoa, que não tivesse aquela emoção imprópria para a parte útil dos embarques.



[354]

O calor, como uma roupa invisível, dá vontade de o tirar.



[355]

Senti-me inquieto já. De repente, o silêncio deixara de respirar.

Súbito, de aço, um dia infinito estilhaçou-se. Agachei-me, animal, sobre a mesa, com as mãos garras inúteis sobre a tábua lisa. Uma luz sem alma entrara nos recantos e nas almas, e um som de montanha próxima desabara do alto, rasgando num grito sedas  do abismo. Meu coração parou. Bateu-me a garganta. A minha consciência viu só um borrão de tinta num papel.



[356]

Depois que o calor cessou, e o princípio leve da chuva cresceu para ouvir-se, ficou no ar uma tranqüilidade que o ar do calor não tinha, uma nova paz em que a água punha uma brisa sua. Tão clara era a alegria desta chuva branda, sem tempestade nem escuridão, que aqueles mesmos, que eram quase todos, que não tinham guarda-chuva ou roupa de defesa, estavam rindo a falar no seu passo rápido pela rua lustrosa.

Num intervalo de indolência cheguei à janela aberta do escritório – o calor a fizera abrir, a chuva não a fizera fechar – e contemplei com a atenção intensa e indiferente, que é o meu modo, aquilo mesmo que acabo de descrever com justeza antes de o ter visto. Sim, lá ia a alegria aos dois banais, falando a sorrir pela chuva miúda, com passos mais rápidos que apressados, na claridade limpa do dia que se velara.

Mas, de repente, da surpresa de uma esquina que já lá estava, rodou para a minha vista um homem velho e mesquinho, pobre e não humilde, que seguia impaciente sob a chuva que havia abrandado. Esse, que por certo não tinha fito, tinha ao menos impaciência. Olhei-o com a atenção, não já desatenta, que se dá às coisas, mas definidora, que se dá aos símbolos. Era o símbolo de ninguém; por isso tinha pressa. Era o símbolo de quem nada fora; por isso sofria. Era parte, não dos que sentem a sorrir a alegria incômoda da chuva, mas da mesma chuva – um inconsciente, tanto que sentia a realidade.

Não era isto, porém, que eu queria dizer. Entre a minha observação do transeunte que, afinal, perdi logo de vista, por não ter continuado a olhá-lo, e o nexo destas observações inseriu-se-me qualquer mistério da desatenção, qualquer emergência da alma que me deixou sem prosseguimento. E ao fundo da minha desconexão, sem que eu os ouça, ouço os sons das falas dos moços da embalagem, lá no fundo do escritório, na parte que é o princípio do armazém, e vejo sem ver os cordéis enfardadores das encomendas postais, passados duas vezes, com os nós duas vezes corridos, à roda dos embrulhos em papel pardo forte, na mesa ao pé da janela para o saguão, entre piadas e tesouras.

Ver é ter visto.



[357]

Regra é da vida que podemos, e devemos, aprender com toda a gente. Há coisas da seriedade da vida que podemos aprender com charlatães e bandidos, há filosofias que nos ministram os estúpidos, há lições de firmeza e de lei que vêm no acaso e nos que são do acaso. Tudo está em tudo.

Em certos momentos muito claros da meditação, como aqueles em que, pelo princípio da tarde, vagueio observante pelas ruas, cada pessoa me traz uma notícia, cada casa me dá uma novidade, cada cartaz tem um aviso para mim.

Meu passeio calado é uma conversa contínua, e todos nós, homens, casas, pedras, cartazes e céu, somos uma grande multidão amiga, acotovelando-se de palavras na grande procissão do Destino.



[358]

Vi e ouvi ontem um grande homem. Não quero dizer um grande homem atribuído, mas um grande homem que verdadeiramente o é. Tem valia, se a há neste mundo; conhecem que tem valia; e ele sabe que o conhecem. Tem, pois, todas as condições para que eu o chame um grande homem. E, efetivamente, o que o chamo.

O aspecto físico é de um comerciante cansado. A cara tem traços de fadiga, mas tanto poderiam ser de pensar demais como de não viver higienicamente. Os gestos são quaisquer. O olhar tem uma certa viveza – privilégio de quem não é míope. A voz é um pouco embrulhada, como se os inícios da paralisia geral estragassem essa emissão da alma. E a alma emitida discursa sobre a política de partidos, sobre a desvalorização do escudo, e sobre o que há de reles nos colegas da grandeza.

Se eu não soubesse quem ele é, não o conheceria pela estampa. Sei bem que não há que fazer dos grandes homens aquela idéia heróica que as almas simples formam: que um grande poeta há-de ser um Apolo de corpo e um Napoleão de expressão; ou, com menos exigências, um homem de distinção e um rosto expressivo. Sei bem que estas coisas são humanidades naturais e absurdas. Mas, se não se espera tudo ou quase tudo, espera-se todavia alguma coisa. E, quando se passa da figura vista para a alma falada, não há sem dúvida que esperar espírito ou vivacidade, mas há ao menos que contar com inteligência, com, ao menos, a sombra da elevação.

Tudo isto – estas desilusões humanas – nos faz pensar no que pode realmente haver de verdade no conceito vulgar de inspiração. Parece que este corpo destinado a comerciante e esta alma destinada a homem educado são, quando estão a sós, investidos misteriosamente de qualquer coisa interior que lhes é externa, e que não falam, senão que se fala neles, e a voz diz o que fora mentira que eles dissessem.

São especulações casuais e inúteis. Chego a ter pena de as ter. Não diminui com elas a valia do homem; não aumenta com elas a expressão do seu corpo. Mas, na verdade, nada altera nada, e o que dizemos ou fazemos roça só os cimos dos montes, em cujos vales dormem as coisas.



[359]

Ninguém compreende outro. Somos, como disse o poeta, ilhas no mar da vida; corre entre nós o mar que nos define e separa. Por mais que uma alma se esforce por saber o que é outra alma, não saberá senão o que lhe diga uma palavra – sombra disforme no chão do seu entendimento.

Amo as expressões porque não sei nada do que exprimem. Sou como o mestre de Santa Marta: contento-me com o que me é dado. Vejo, e já é muito. Quem é capaz de entender?

Talvez seja por este ceticismo do inteligível que eu encaro de igual modo uma árvore e uma cara, um cartaz e um sorriso. (Tudo é natural, tudo artificial, tudo igual.) Tudo o que vejo é para mim o só visível, seja o céu alto azul de verde branco da manhã que há-de vir, seja o esgar falso em que se contrai o rosto de quem está a sofrer perante testemunhas a morte de quem ama.

Bonecos, ilustrações, páginas que existem e se voltam. Meu coração não está neles nem quase minha atenção, que os percorre de fora, como uma mosca por um papel.

Sei eu sequer se sinto, se penso, se existo? Nada: só um esquema objetivo de cores, de formas, de expressões de que sou o espelho oscilante por vender inútil.



[360]

Comparados com os homens simples e autênticos, que passam pelas ruas da vida, com um destino natural e calhado, essas figuras dos cafés assumem um aspecto que não sei definir senão comparando-as a certos duendes de sonhos – figuras que não são de pesadelo nem de mágoa, mas cuja recordação, quando acordamos, nos deixa, sem que saibamos porquê, um sabor a um nojo passado, um desgosto de qualquer coisa que está com eles mas que se não pode definir como sendo deles.

Vejo os vultos dos gênios e dos vencedores reais, mesmo pequenos, singrar na noite das coisas sem saber o que cortam as suas proas altivas, nesse mar de sargaço de palha de embalagem  e aparas de cortiça.

Ali se resume tudo, como no chão do saguão do prédio do escritório, que, visto através das grades da janela do armazém, parece uma cela para prender lixo.



[361]

A procura da verdade – seja a verdade subjetiva do convencimento, a objetiva da realidade, ou a social do dinheiro ou do poder – traz sempre consigo, se nela se emprega quem merece prêmio, o conhecimento último da sua inexistência. A sorte grande da vida sai somente aos que compraram por acaso.

A arte tem valia porque nos tira de aqui.



[362]

É legitima toda a violação da lei moral que é feita em obediência a uma lei moral superior. Não é desculpável roubar um pão por ter fome. É desculpável a um artista roubar dez contos para garantir por dois anos a sua vida e tranqüilidade, desde que a sua obra tenda a um fim civilizacional; se é uma mera obra estética, não vale o argumento.



[363]

Nós não podemos amar, filho. O amor é a mais carnal das ilusões. Amar é possuir, escuta. E o que possui quem ama? O corpo? Para o possuir seria preciso tornar nossa a sua matéria, comê-lo, incluí-lo em nós... E essa impossibilidade seria temporária, porque o nosso próprio corpo passa e se transforma, porque nós não possuímos o nosso corpo (possuímos apenas a nossa sensação dele), e porque, uma vez possuído esse corpo amado, tornar-se-ia nosso, deixaria de ser outro, e o amor, por isso, com o desaparecimento do outro ente, desapareceria...

Possuímos a alma? Ouve-me em silêncio: Nós não a possuímos. Nem a nossa alma é nossa sequer. Como, de resto, possuir uma alma? Entre alma e alma há o abismo de serem almas.

Que possuímos? que possuímos? Que nos leva a amar? A beleza? E nós possuímo-la amando? A mais feroz e dominadora posse de um corpo o que possui dele? Nem o corpo, nem a alma, nem a beleza sequer. A posse de um corpo lindo não abraça a beleza, abraça a carne celulada e gordurosa; o beijo não toca na beleza da boca, mas na carne úmida dos lábios perecíveis e mucosas; a própria cópula é um contato apenas, um contato esfregado e próximo, mas não uma penetração real, sequer de um corpo por outro corpo... Que possuímos nós? que possuímos?

As nossas sensações, ao menos? Ao menos o amor é um meio de nos possuirmos, a nós, nas nossas sensações? é, ao menos, um modo de sonharmos nitidamente, e mais gloriosamente portanto, o sonho de existirmos? e, ao menos, desaparecida a sensação, fica a memória dela conosco sempre, e assim, realmente possuímos...

Desenganemos até disto. Nós nem as nossas sensações possuímos. Não fales. A memória, afinal, é a sensação do passado... E toda a sensação é uma ilusão.

– Escuta-me, escuta-me sempre. Escuta-me e não olhes pela janela aberta a plana outra margem do rio, nem o crepúsculo, nem esse silvo de um comboio que corta o longe vago. – Escuta-me em silêncio...

Nós não possuímos as nossas sensações... Nós não nos possuímos nelas.

(Urna inclinada, o crepúsculo verte sobre nós um óleo de onde as horas, pétalas de rosas, bóiam espaçadamente.)



[364]

Eu não possuo o meu corpo – como posso eu possuir com ele? Eu não possuo a minha alma – como posso possuir com ela? Não compreendo o meu espírito – como através dele compreender?

Não possuímos nem o corpo nem uma verdade – nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras, sombras de ilusões, e a nossa vida é oca por fora e por dentro.

Conhece alguém as fronteiras à sua alma, para que possa dizer – eu sou eu?

Mas sei que o que eu sinto, sinto-o eu.

Quando outrem possui esse corpo, possui nele o mesmo que eu? Não. Possui outra sensação.

Possuímos nós alguma coisa? Se nós não sabemos o que somos, como sabemos nós o que possuímos?

Se do que comes, dissesses, “eu possuo isto”, eu compreendia-te. Porque sem dúvida o que comes, tu o incluis em ti, tu o transformas em matéria tua, tu o sentes entrar em ti e pertencer-te. Mas do que comes não falas tu de “posse”. A que chamas tu possuir?



[365]

A loucura chamada afirmar, a doença chamada crer, a infâmia chamada ser feliz – tudo isto cheira a mundo, sabe à triste coisa que é a terra.

Sê indiferente. Ama o poente e o amanhecer, porque não há utilidade, nem para ti, em amá-los. Veste teu ser do ouro da tarde morta, como um rei deposto numa manhã de rosas, com Maio nas nuvens brancas e o sorriso das virgens nas quintas afastadas. Tua ânsia morra entre mirtos, teu tédio cesse entre tamarindos e o som da água acompanhe tudo isto como um entardecer ao pé de margens, e o rio, sem sentido salvo correr, eterno, para marés longínquas. O resto é a vida que nos deixa, a chama que morre no nosso olhar, a púrpura gasta antes de a vestirmos, a lua que vela o nosso abandono, as estrelas que estendem o seu silêncio sobre a nossa hora de desengano. Assídua, a mágoa estéril e amiga que nos aperta ao peito com amor.

Meu destino é a decadência.

Meu domínio foi outrora em vales fundos. O som de águas que nunca sentiram sangue rega o ouvido dos meus sonhos. O copado das árvores que esquece a vida era verde sempre nos meus esquecimentos. A lua era fluida como água entre pedras. O amor nunca veio àquele vale e por isso tudo ali era feliz. Nem sonho, nem amor, nem deuses em templo, passando entre a brisa e a hora una e sem que soubesse saudades das crenças mais bêbadas, mais escusas.



[366]

Paisagens inúteis como aquelas que dão a volta às chávenas chinesas, partindo da asa e vindo acabar na asa, de repente. As chávenas são sempre tão pequenas... Para onde se prolongaria, e com que de porcelana, a paisagem que não se prolongou para além da asa da chávena?

É possível a certas almas sentir uma dor profunda por a paisagem pintada num abano chinês não ter três dimensões.



[367]

... e os crisântemos adoecem a sua vida lassa em jardins apenumbrados de contê-los.

... a luxúria japonesa de ter evidentemente duas dimensões apenas.

... a existência colorida sobre transparências baças das figuras japonesas nas chávenas.

... uma mesa posta para um chá discreto – mero pretexto para conversas inteiramente estéreis – teve sempre para mim qualquer coisa de ente e individualidade com alma. Forma, como um organismo, um todo sintético! Que não é a pura soma das partes que o compõem.



[368]

E os diálogos nos jardins fantásticos que contornam nada definidamente certas chávenas? Que palavras sublimes não devem estar trocando as duas figuras que se assentam no lado de lá daquele bule! E eu sem ouvidos apropriados para as ouvir, morto na policroma humanidade!

Deliciosa psicologia das coisas deveras estáticas! A eternidade tece-a e o gesto que uma figura pintada tem desdenha, do alto da sua eternidade visível, a nossa transitória febre, que nunca se fixa numa atitude nem se demora nos portões de um esgar.

Que curioso deve ser o folclore do colorido povo dos painéis! Os amores das figuras bordadas – amores de duas dimensões, duma castidade geométrica – devem ser para entretenimento dos psicólogos ouvidos.

Não amamos, senão que fingimos amar. O verdadeiro amor, o imortal e inútil, pertence àquelas figuras em que a mudança não entra, por sua natureza de estáticas. Desde que eu o conheço, o japonês que se senta na convexa do meu bule não mudou ainda... Não saboreou nunca as mãos da mulher que está a um distar errado dele. Um colorido extinto como de um sol despejado, entornado, irrealiza eternamente as encostas  desse monte. E tudo aquilo obedece a um instante de pena – pena mais fiel do que esta que inutilmente preenchesse a fragilidade das minhas horas exaustas.



[369]

Nesta era metálica dos bárbaros só um culto metodicamente excessivo das nossas faculdades de sonhar, de analisar e de atrair pode servir de salvaguarda à nossa personalidade, para que se não desfaça ou para nula ou para idêntica às outras.

O que as nossas sensações têm de real é precisamente o que têm de não nossas. O que há de comum nas sensações é que forma a realidade. Por isso a nossa individualidade nas nossas sensações está só na parte enorme delas. A alegria que eu teria se visse um dia o sol escarlate. Seria tão meu aquele sol, só meu!



[370]

Nunca deixo saber aos meus sentimentos  o que lhes vou fazer sentir... Brinco com as minhas sensações como uma princesa cheia de tédio com os seus grandes gatos prontos e cruéis...

Fecho subitamente portas dentro de mim, por onde certas sensações iam passar para se realizarem. Retiro bruscamente do seu caminho os objetos espirituais que lhes vão vincar certos gestos.

Pequenas frases sem sentido, metidas nas conversas que supomos estar tendo; afirmações absurdas feitas com cinzas de outras que já de si não significam nada...

– O seu olhar tem qualquer coisa de música tocada a bordo dum barco, no meio misterioso de um rio com florestas na margem oposta...

– Não diga que é fria uma noite de luar. Abomino as noites de luar... Há quem costume realmente tocar música nas noites de luar... – Isso também é possível... E é lamentável, está claro... Mas o seu olhar tem realmente o desejo de ser saudoso de qualquer coisa... Falta-lhe o sentimento que exprime... Acho na falsidade da sua expressão uma quantidade de ilusões que tenho tido...

– Creia que sinto às vezes o que digo, e até, apesar de mulher, o que digo com o olhar...

– Não está sendo cruel para consigo própria? Nós sentimos realmente o que pensamos que estamos sentindo? Esta nossa conversa, por exemplo, tem visos de realidade? Não tem. Num romance não seria admitida.

– Com muita razão... Eu não tenho a absoluta certeza de estar falando consigo, repare... Apesar de mulher, criei-me um dever de ser estampa de um livro de impressões de um desenhista doido... Tenho em mim detalhes exageradamente nítidos... Dá um pouco, bem sei, a impressão de realidade excessiva e um pouco forçada... Acho que a única coisa digna de uma mulher contemporânea é este ideal de ser estampa. Quando eu era criança queria ser a rainha dum naipe qualquer num baralho de cartas antigo que havia em minha casa... Achava esse mister de uma heráldica realmente compassiva... Mas quando se é criança, tem-se aspirações morais destas... Só depois, na idade em que as nossas aspirações são todas imorais, é que pensamos nisso a serto...

– Eu, como nunca falo a  crianças, creio no instinto artista delas... Sabe, enquanto estou falando, agora mesmo, eu estou querendo penetrar o íntimo sentido dessas coisas que me estava dizendo... Perdoa-me?

– Não de todo... Nunca se deve devassar os sentimentos que os outros fingem que têm. São sempre demasiadamente íntimos... Acredite que me dói realmente estar-lhe fazendo estas confidências íntimas, que, se bem que todas elas falsas, representam verdadeiros farrapos da minha pobre alma... No fundo, acredite, o que somos de mais doloroso é o que não somos realmente, e as nossas maiores tragédias passam-se na nossa idéia de nós.

– Isso é tão verdadeiro... Para que dizê-lo? Feriu-me. Para que tirar à nossa conversa a sua irrealidade constante? Assim é quase uma conversa possível, passada a uma mesa de chá, entre uma mulher linda e um imaginador de sensações.

– Sim, sim... É a minha vez de pedir perdão... Mas olhe que eu estava distraída e não reparei realmente em que tinha dito uma coisa justa... Mudemos de assunto... Que tarde que é sempre!... Não se torne a zangar... Olhe que esta minha frase não tem sentido absolutamente nenhum...

–Não me peça desculpas, não repare em que estamos falando... Toda a boa conversa deve ser um monólogo de dois... Devemos, no fim, não poder ter a certeza se conversamos realmente com alguém ou se imaginamos totalmente a conversa... As melhores  e as mais íntimas conversas, e sobretudo as menos moralmente instrutivas, são aquelas que os romancistas têm entre duas personagens das suas novelas... Como exemplo...

– Por amor de Deus! Não ia decerto citar-me um exemplo... Isso só se faz nas gramáticas; não sei se se recorda que até nunca as lemos.

–Leu alguma vez uma gramática?

– Eu nunca. Tive sempre uma aversão profunda a saber como se dizem as coisas... A minha única simpatia, nas gramáticas, ia para as exceções e para os pleonasmos... Escapar às regras e dizer coisas inúteis resume bem a atitude essencialmente moderna... Não é assim que se diz?...

– Absolutamente... O que tem de antipático nas gramáticas (já reparou na deliciosa impossibilidade de estarmos falando neste assunto?) – o que há de mais antipático nas gramáticas é o verbo, os verbos... São as palavras que dão sentido às frases... Uma frase honesta deve sempre poder ter vários sentidos... Os verbos!... Um amigo meu que se suicidou – cada vez que tenho uma conversa um pouco longa suicido um amigo – tinha tencionado dedicar toda a sua vida a destruir os verbos...

–Ele por que se suicidou?

– Espere, ainda não sei... Ele pretendia descobrir e fixar o modo de não completar as frases sem parecer fazê-lo. Ele costumava dizer-me que procurava o micróbio da significação... Suicidou-se, é claro, porque um dia reparou na responsabilidade imensa que tomara sobre si... A importância do problema deu-lhe cabo do cérebro... Um revólver e...

–Ah, não... Isso de modo algum... Não vê que não podia ser um revólver?... Um homem desses nunca dá um tiro na cabeça... O senhor pouco se entende com os amigos que nunca teve... É um defeito grande, sabe?... A minha melhor amiga – uma deliciosa rapaz que eu inventei –

–Dão-se bem?

– Tanto quanto é possível... Mas essa rapariga, não imagina,

As duas criaturas que estavam à mesa de chá não tiveram com certeza esta conversa. Mas estavam tão alinhadas e bem vestidas que era pena que não falassem assim... Por isso escrevi esta conversa para elas a terem tido... As suas atitudes, os seus pequenos gestos, as suas criancices de olhares e sorrisos, momentos de conversa que ambos entendemos no sentimento de existirmos, disseram nitidamente o que falsamente finjo que reporto... Quando eles um dia forem ambos e sem dúvida casados cada um para seu lado – em intentos demais juntos, para poderem casar um com o outro –, se eles por acaso olharem para estas páginas, acredito que reconhecerão o que nunca disseram e que não deixarão de me ser gratos por eu ter interpretado tão bem, não só o que eles são realmente, mas o que eles nunca desejaram ser nem sabiam que eram...

Eles, se me lerem, acreditem que foi isto que realmente disseram. Na conversa aparente que eles escutaram um ao outro faltavam tantas coisas que – faltou o perfume da hora, o aroma do chá, a significação para o caso do ramo de que ela tinha ao peito... Tudo isso, que assim formou parte da conversa, eles se esqueceram de dizer... Mas tudo isto lá estava e o que eu faço é, mais do que um trabalho literário, um trabalho de historiador. Reconstruo, completando... e isso me servirá de desculpa junto deles, de ter estado tão fixamente a escutar-lhes o que diziam e não queriam dizer.



[371]

Apoteose do absurdo

Falo a sério e tristemente; este assunto não é para alegria, porque as alegrias do sonho são contraditórias e entristecidas e por isso aprazíveis de uma misteriosa maneira especial.

Sigo às vezes em mim, imparcialmente, essas coisas deliciosas e absurdas que eu não posso poder ver, porque são ilógicas à vista – pontes sem donde nem para onde, estradas sem princípio nem fim, paisagens invertidas – o absurdo, o ilógico, o contraditório, tudo quanto nos desliga e afasta do real e do seu séqüito disforme de pensamentos práticos e sentimentos humanos e desejos de ação útil e profícua. O absurdo salva de chegar a pesar de tédio aquele estado de alma que começa por se sentir a doce fúria de sonhar.

E eu chego a ter não sei que misterioso modo de visionar esses absurdos – não sei explicar, mas eu vejo essas coisas inconcebíveis à visão.



[372]

Apoteose do absurdo

Absurdemos a vida, de leste a oeste.



[373]

A vida é uma viagem experimental, feita involuntariamente. É uma viagem do espírito através da matéria, e como é o espírito que viaja, é nele que se vive. Há, por isso, almas contemplativas que têm vivido mais intensa, mais extensa, mais tumultuariamente do que outras que têm vivido externas. O resultado é tudo. O que se sentiu foi o que se viveu. Recolhe-se tão cansado de um sonho como de um trabalho visível. Nunca se viveu tanto como quando se pensou muito.

Quem está ao canto da sala dança com todos os dançarmos. Vê tudo, e, porque vê tudo, vive tudo. Como tudo, em súmula e ultimidade, é uma sensação nossa, tanto vale o contato com um corpo como a visão dele, ou, até, a sua simples recordação. Danço, pois, quando vejo dançar. Digo, como o poeta inglês, narrando que contemplava, deitado na erva ao longe, três ceifeiros:

“Um quarto está ceifando, e esse sou eu.”

Vem isto tudo, que vai dito como vai sentido, a propósito do grande cansaço, aparentemente sem causa, que desceu hoje súbito sobre mim. Estou não só cansado, mas amargurado, e a amargura é incógnita também. Estou, de angustiado, à beira de lágrimas – não de lágrimas que se choram, mas que se reprimem, lágrimas de uma doença da alma, que não de uma dor sensível.

Tanto tenho vivido sem ter vivido! Tanto tenho pensado sem ter pensado! Pesam sobre mim mundos de violências paradas, de aventuras tidas sem movimento. Estou farto do que nunca tive nem terei, tediento de deuses por existir. Trago comigo as feridas de todas as batalhas que evitei. Meu corpo muscular está moído do esforço que nem pensei em fazer.

Baço, mudo, nulo... O céu ao alto é de um verão morto, imperfeito. Olho-o como se ele ali não estivesse. Durmo o que penso, estou deitado andando, sofro sem sentir. A minha grande nostalgia é de nada, é nada, como o céu alto que não vejo, e que estou fitando impessoalmente.



[374]

Na perfeição nítida do dia estagna contudo o ar cheio de sol. Não é a pressão presente da trovoada futura, mal-estar dos corpos involuntários, vago baço do céu azul deveras. É o torpor sensível da insinuação do ócio, pluma roçando leve a face a adormecer. É estio mas verão. Apetece o campo até a quem não gosta dele.

Se eu fora outro, penso, este seria para mim um dia feliz, pois o sentiria sem pensar nele. Concluiria com uma alegria de antecipação o meu trabalho normal – aquele que me é monotonamente anormal todos os dias. Tomaria o carro para Benfica, com amigos combinados. Jantaríamos em pleno fim de sol, entre hortas. A alegria em que estaríamos seria parte da paisagem, e por todos, quantos nos vissem, reconhecida como de ali.

Como, porém, sou eu, gozo um pouco o pouco que é imaginar-me esse outro. Sim, logo ele-eu, sob parreira ou árvore, comerá o dobro do que sei comer, beberá o dobro do que ouso beber, rirá o dobro do que posso pensar em rir. Logo ele, eu agora. Sim, um momento fui outro: vi, vivi, em outrem, essa alegria humilde e humana de existir como um animal em mangas de camisa. Grande dia que me fez sonhar assim! É tudo azul e sublime no alto como o meu sonho efêmero de ser caixeiro de praça com saúde em não sei que férias de fim de dia.



[375]

O campo é onde não estamos. Ali, só ali, há sombras verdadeiras e verdadeiro arvoredo.

A vida é a hesitação entre uma exclamação e uma interrogação. Na dúvida, há um ponto final.

O milagre é a preguiça de Deus, ou, antes, a preguiça que Lhe atribuímos, inventando o milagre.

Os Deuses são a encarnação do que nunca poderemos ser.

O cansaço de todas as hipóteses...



[376]

A leve embriaguez da febre ligeira, quando um desconforto mole e penetrante e frio pelos ossos doridos fora e quente nos olhos sob têmporas que batem – a esse desconforto quero como um escravo a um tirano amado. Dá-me aquela quebrada passividade trêmula em que entrevejo visões, viro esquinas de idéias e entre entrepolamentos de sentimentos me desconcerto.

Pensar, sentir, querer, tornam-se uma só confusa coisa. As crenças, as sensações, as coisas imaginadas e as atuais estão desarrumadas, são como o conteúdo misturado no chão, de várias gavetas subvertidas.



[377]

A sensação da convalescença, sobretudo se se fez mal sentir nos nervos a doença que a precedeu, tem qualquer coisa de alegria triste. Há um outono nas emoções e nos pensamentos, ou, antes, um daqueles princípios de primavera que, salvo que não caem folhas, parecem, no ar e no céu, o outono.

O cansaço sabe bem, e o bem que sabe dói um pouco. Sentimo-nos um pouco à parte da vida, ainda que nela, como que na varanda da casa de viver.

Estamos contemplativos sem pensar, sentimos sem emoção definível. A vontade sossega, pois não há necessidade dela.

É então que certas memórias, certas esperanças, certos vagos desejos sobem lentamente a rampa da consciência, como caminheiros vagos vistos do alto do monte. Memórias de coisas fúteis, esperança de coisas que não fez mal que não fossem, desejos que não tiveram violência de natureza ou de emissão, que nunca puderam querer ser.

Quando o dia se ajusta a estas sensações, como hoje, que, ainda que estio, está meio nublado com azuis, e um vago vento que por não ser quente é quase frio, então aquele estado de alma se acentua em que pensamos, sentimos, vivemos estas impressões. Não que sejam mais claras as memórias, as esperanças, os desejos que tínhamos. Mas sente-se mais, e a sua soma incerta pesa um pouco, absurdamente, sobre o coração.

Há qualquer coisa de longínquo em mim neste momento. Estou de fato à varanda da vida, mas não é bem desta vida. Estou por sobre ela, e vendo-a de onde vejo. Jaz diante de mim, descendo em socalcos e resvalamentos, como uma paisagem diversa, até aos fumos sobre casas brancas das aldeias do vale. Se cerrar os olhos, continuo vendo, pois que não vejo. Se os abrir nada mais vejo, pois que não via. Sou todo eu uma vaga saudade, nem do passado, nem do futuro: sou uma saudade do presente, anônima, prolixa e incompreendida.



[378]

Os classificadores de coisas, que são aqueles homens de ciência cuja ciência é só classificar, ignoram, em geral, que o classificável é infinito e portanto se não pode classificar. Mas o em que vai meu pasmo é que ignorem a existência de classificáveis incógnitos, coisas da alma e da consciência que estão nos interstícios do conhecimento.

Talvez porque eu pense demais ou sonhe demais, o certo é que não distingo entre a realidade que existe e o sonho, que é a realidade que não existe. E assim intercalo nas minhas meditações do céu e da terra coisas que não brilham de sol ou se pisam com pés – maravilhas fluidas da imaginação.

Douro-me de poentes supostos, mas o suposto é vivo na suposição. Alegro-me de brisas imaginárias, mas o imaginário vive quando se imagina. Tenho alma por hipóteses várias, mas essas hipóteses têm alma própria, e me dão portanto a que têm.

Não há problema senão o da realidade, e esse é insolúvel e vivo. Que sei eu da diferença entre uma árvore e um sonho? Posso tocar na árvore; sei que tenho o sonho. Que é isto, na sua verdade?

Que é isto? Sou eu que, sozinho no escritório deserto, posso viver imaginando sem desvantagem da inteligência. Não sofro interrupção de pensar das carteiras abandonadas e da seção de remessas só com papel e cordéis em rolos. Estou, não no meu banco alto, mas recostado, por uma promoção por fazer, na cadeira de braços redondos do Moreira. Talvez seja a influência do lugar que me unge de distraído. Os dias de grande calor fazem sono; durmo sem dormir por falta de energia. E por isso penso assim.



[379]

Intervalo doloroso

Já me cansa a rua, mas não, não me cansa – tudo é rua na vida. Há a taberna defronte, que vejo se olho por cima do ombro direito; e há o convento defronte, que vejo se olho por cima do ombro esquerdo; e, no meio, que não verei se me não voltar de todo, o sapateiro enche de som regular o portão do escritório da Companhia Africana. Os outros andares são indeterminados. No terceiro andar há uma pensão, dizem que imoral, mas isso é como tudo, a vida.

Cansar-me a rua? Canso-me só quando penso. Quando olho a rua, ou a sinto, não penso: trabalho com um grande repouso íntimo, último naquele canto, escriturantemente ninguém. Não tenho alma, ninguém tem alma – tudo é trabalho na casa larga. Onde os milionários gozam, sempre no estrangeiro deles, também há trabalho, e também não há alma. Fica de tudo um ou outro poeta. Quem me dera que de mim ficasse uma frase, uma coisa dita de que se dissesse, Bem feito!, como os números que vou inscrevendo, copiando-os, no livro da minha vida inteira.

Nunca deixarei, creio, de ser ajudante de guarda-livros de um armazém de fazendas. Desejo, com uma sinceridade que é feroz, não passar nunca a guarda-livros.



[380]

Há muito – não sei se há dias, se há meses – não registro impressão nenhuma; não penso, portanto não existo. Estou esquecido de quem sou; não sei escrever porque não sei ser. Por um adormecimento oblíquo, tenho sido outro. Saber que me não lembro é despertar.

Desmaiei um bocado da minha vida. Volto a mim sem memória do que tenho sido, e a do que fui sofre de ter sido interrompida. Há em mim uma noção confusa de um intervalo incógnito, um esforço fútil de parte da memória para querer encontrar a outra. Não consigo reatar-me. Se tenho vivido, esqueci-me de o saber.

Não é que seja este primeiro dia do outono sensível – o primeiro de frio não fresco que veste o estio morto de menos luz – que me dê, numa transparência alheada, uma sensação de desígnio morto ou de vontade falsa. Não é que haja, neste interlúdio de coisas perdidas, um vestígio incerto de memória inútil. É, mais dolorosamente que isso, um tédio de estar lembrando o que se não recorda, um desalento do que a consciência perdeu entre algas ou juncos, a beira não sei de quê.

Conheço que o dia, límpido e imóvel, tem um céu positivo e azul menos claro que o azul profundo. Conheço que o sol, vagamente menos de ouro que era, doura de reflexos úmidos os muros e as janelas. Conheço que, não havendo vento ou brisa que o lembre e negue, dorme todavia uma frescura desperta pela cidade indefinida. Conheço tudo isso, sem pensar nem querer, e não tenho sono senão por lembrança, nem saudade senão por desassossego.

Convalesço, estéril e longínquo, da doença que não tive. Predisponho-me, ágil de despertar, ao que não ouso. Que sono me não deixou dormir? Que afago me não quis falar? Que bom ser outro com este hausto frio de primavera forte! Que bom poder ao menos pensá-lo, melhor que a vida, enquanto ao longe na imagem relembrada os juncos, sem vento que se sinta, se inclinam glaucos da ribeira!

Quantas vezes, relembrando quem não fui, me medito jovem e esqueço! E eram outras que foram as paisagens que não vi nunca; eram novas sem terem sido as paisagens que deveras vi. Que me importa? Findei a acasos e interstícios, e, enquanto o fresco do dia é o do sol mesmo, dormem frios, no poente que vejo sem ter, os juncos escuros da ribeira.



[381]

Ninguém ainda definiu, com linguagem com que compreendesse quem o não tivesse experimentado, o que é o tédio. O a que uns chamam tédio, não é mais que aborrecimento; o que a outros o chamam, não é senão mal-estar; há outros, ainda, que chamam tédio ao cansaço. Mas o tédio, embora participe do cansaço, e do mal-estar, e do aborrecimento, participa deles como a água participa do hidrogênio e oxigênio, de que se compõe. Inclui-os sem a eles se assemelhar.

Se uns dão assim ao tédio um sentido restrito e incompleto, um ou outro lhe presta uma significação que em certo modo o transcende – como quando se chama tédio ao desgosto íntimo e espiritual da variedade e da incerteza do mundo. O que faz abrir a boca, que é o aborrecimento; o que faz mudar de posição, que é o mal-estar; o que faz não se poder mexer, que é o cansaço – nenhuma destas coisas é o tédio; mas também o não é o sentimento profundo da vacuidade das coisas, pelo qual a aspiração frustrada se liberta, a ânsia desiludida se ergue, e se forma na alma a semente da qual nasce o místico ou o santo.

O tédio é, sim, o aborrecimento do mundo, o mal-estar de estar vivendo, o cansaço de se ter vivido; o tédio é, deveras, a sensação carnal da vacuidade prolixa das coisas. Mas o tédio é, mais do que isto, o aborrecimento de outros mundos, quer existam quer não; o mal-estar de ter que viver, ainda que outro, ainda que de outro modo, ainda que noutro mundo; o cansaço, não só de ontem e de hoje, mas de amanhã também, da eternidade, se a houver, e do nada, se é ele que é a eternidade. Nem é só a vacuidade das coisas e dos seres que dói na alma quando ela está em tédio: é também a vacuidade de outra coisa qualquer, que não as coisas e os seres, a vacuidade da própria alma que sente o vácuo, que se sente vácuo, e que nele de si se enoja e se repudia.

O tédio é a sensação física do caos, e de que o caos é tudo. O aborrecido, o mal-estante, o cansado sentem-se presos numa cela estreita. O desgostoso da estreiteza da vida sente-se algemado numa cela grande. Mas o que tem tédio sente-se preso em liberdade frusta numa cela infinita. Sobre o que se aborrece, ou tem mal-estar, ou fadiga, podem desabar os muros da cela, e soterrá-lo. Ao que se desgosta da pequenez do mundo podem cair as algemas, e ele fugir, ou doer de as não poder tirar, e ele, com sentir a dor, reviver-se sem desgosto. Mas os muros da cela infinita não nos podem soterrar, porque não existem; nem nos podem sequer fazer viver pela dor as algemas que ninguém nos pôs.

E é isto que eu sinto ante a beleza plácida desta tarde que finda imperecivelmente. Olho o céu alto e claro, onde coisas vagas, róseas, como sombras de nuvens, são uma penugem impalpável de uma vida alada e longínqua. Baixo os olhos sobre o rio, onde a água, não mais que levemente trêmula, é de um azul que parece espelhado de um céu mais profundo. Ergo de novo os olhos ao céu, há já, entre o que de vagamente colorido se esfia sem farrapos no ar invisível, um tom algendo [sic] de branco baço, como se alguma coisa também das coisas, onde são mais altas e frustas, tivesse um tédio material próprio, uma impossibilidade de ser o que é, um corpo imponderável de angústia e de desolação.

Mas quê? Que há no ar alto mais que o ar alto, que não é nada? Que há no céu mais que uma cor que não é dele? Que há nesses farrapos de menos que nuvens, de que já duvido, mais que uns reflexos de luz materialmente incidentes de um sol já submisso? Que há em tudo isto senão eu? Ah, mas o tédio é isso, é só isso. É que em tudo isto – céu, terra, mundo, – o que há em tudo isto não é senão eu!



[382]

Cheguei àquele ponto em que o tédio é uma pessoa, a ficção encarnada do meu convívio comigo.



[383]

O mundo exterior existe como um ator num palco: está lá mas é outra coisa.



[384]

e tudo é uma doença incurável.

A ociosidade de sentir, o desgosto de ter de não saber fazer nada, a incapacidade de agir, como um



[385]

Névoa ou fumo? Subia da terra ou descia do céu? Não se sabia: era mais como uma doença do ar que uma descida ou uma emanação. Por vezes parecia mais uma doença dos olhos do que uma realidade da natureza.

Fosse o que fosse ia por toda a paisagem uma inquietação turva, feita de esquecimento e de atenuação. Era como se o silêncio do mau sol tomasse para seu um corpo imperfeito. Dir-se-ia que ia acontecer qualquer coisa e que por toda a parte havia uma intuição pela qual o visível se velava.

Era difícil dizer se o céu tinha nuvens ou antes névoa. Era um torpor baço, aqui e ali colorido, um acinzentamento imponderavelmente amarelado, salvo onde se esboroava em cor-de-rosa falso, ou onde estagnava azulescendo, mas aí não se distinguia se era o céu que se revelava, se era outro azul que o encobria.

Nada era definido, nem o indefinido. Por isso apetecia chamar fumo à névoa, por ela não parecer névoa, ou perguntar se era névoa ou fumo, por nada se perceber do que era. O mesmo calor do ar colaborava na dúvida. Não era calor, nem frio, nem fresco; parecia compor a sua temperatura de elementos tirados de outras coisas que o calor. Dir-se-ia, deveras, que uma névoa fria aos olhos era quente ao tato, como se tato e vista fossem dois modos sensíveis do mesmo sentido.

Nem era, em torno dos contornos das árvores, ou das esquinas dos edifícios, aquele esbater de recortes ou de arestas, que a verdadeira névoa traz, estagnando, ou o verdadeiro fumo, natural, entreabre e entrescurece. Era como se cada coisa projetasse de si uma sombra vagamente diurna, em todos os sentidos, sem luz que a explicasse como sombra, sem lugar de projeção que a justificasse como visível.

Nem visível era: era como um começo de ir a ver-se qualquer coisa, mas em toda a parte por igual, como se o a revelar hesitasse em ser aparecido.

E que sentimento havia? A impossibilidade de o ter, o coração desfeito na cabeça, os sentimentos confundidos, um torpor da existência desperta, um apurar de qualquer coisa anímica como o ouvido para uma revelação definitiva, inútil, sempre a aparecer já, como a verdade, sempre, como a verdade, gêmea de nunca aparecer.

Até a vontade de dormir, que lembra ao pensamento, desapetece por parecer um esforço o mero bocejo de a ter. Até deixar de ver faz doer os olhos. E, na abdicação incolor da alma inteira, só os ruídos exteriores, longe, são o mundo impossível que ainda existe.

Ah, outro mundo, outras coisas, outra alma com que senti-las, outro pensamento com que saber dessa alma! Tudo, até o tédio, menos este esfumar comum da alma e das coisas, este desamparo azulado da indefinição de tudo!



[386]

Caminhávamos, juntos e separados, entre os desvios bruscos da floresta. Nossos passos, que era o alheio de nós, iam unidos, porque uníssonos, na macieza estalante das folhas, que juncavam, amarelas e meio-verdes, a irregularidade do chão. Mas iam também disjuntos porque éramos dois pensamentos, nem havia entre nós de comum senão que o que não éramos pisava uníssono o mesmo solo ouvido.

Tinha entrado já o princípio do outono, e, além das folhas que pisávamos, ouvíamos cair continuamente, no acompanhamento brusco do vento, outras folhas, ou sons de folhas, por toda a parte onde íamos ou havíamos ido. Não havia mais paisagem senão a floresta que velava todas. Bastava, porém, como sítio e lugar para os que, como nós, não tínhamos por vida senão o caminhar uníssono e diverso sobre um solo mortiço. Era – creio – o fim de um dia, ou de qualquer dia, ou porventura de todos os dias, num outono todos os outonos, na floresta simbólica e verdadeira.

Que casas, que deveres, que amores havíamos largado – nós mesmos o não saberíamos dizer. Não éramos, nesse momento, mais que caminhantes entre o que esquecêramos e o que não sabíamos, cavaleiros a pé do ideal abandonado. Mas nisso, como no som constante das folhas pisadas, e no som sempre brusco do vento incerto, estava a razão de ser da nossa ida, ou da nossa vinda, pois, não sabendo o caminho ou porque o caminho, não sabíamos se partíamos se chegávamos. E sempre, em torno nosso, sem lugar sabido ou queda vista, o som das folhas que escombravam adormecia de tristeza a floresta.

Nenhum de nós queria saber do outro, porém nenhum de nós sem ele prosseguiria. A companhia que nos fazíamos era uma espécie de sono que cada um de nós tinha. O som dos passos uníssonos ajudava cada um a pensar sem o Outro, e os próprios passos solitários tê-lo-iam despertado. A floresta era toda clareiras falsas, como se fosse falsa, ou estivesse acabando, mas nem acabava a falsidade, nem acabava a floresta. Nossos passos uníssonos seguiam constantes, e em torno do que ouvíamos das folhas pisadas ia um som vago de folhas caindo, na floresta tornada tudo, na floresta igual ao universo.

Quem éramos? Seríamos dois ou duas formas de um? Não o sabíamos nem o perguntávamos. Um sol vago devia existir, pois na floresta não era noite. Um fim vago devia existir, pois caminhávamos. Um mundo qualquer devia existir, pois existia uma floresta. Nós, porém, éramos alheios ao que fosse ou pudesse ser, caminheiros uníssonos e intermináveis sobre folhas mortas, ouvidores anônimos e impossíveis de folhas caindo. Nada mais. Um sussurro, ora brusco ora suave, do vento incógnito, um murmúrio, ora alto ora baixo, das folhas presas, um resquício, uma dúvida, um propósito que findara, uma ilusão que nem fora – a floresta, os dois caminheiros, e eu, eu, que não sei qual deles era, ou se era ou dois, ou nenhum, e assisti, sem ver o fim, à tragédia de não haver nunca mais do que o outono e a floresta, e o vento sempre brusco e incerto, e as folhas sempre caídas ou caindo. E sempre, como se por certo houvesse fora um sol e um dia, via-se claramente, para fim nenhum, no silêncio rumoroso da floresta.



[387]

Suponho que seja o que chamam um decadente, que haja em mim, como definição externa do meu espírito, essas lucilações tristes de uma estranheza postiça que incorporam em palavras inesperadas uma alma ansiosa e malabar. Sinto que sou assim e que sou absurdo. Por isso busco, por uma imitação de uma hipótese dos clássicos, figurar ao menos em uma matemática expressiva as sensações decorativas da minha alma substituída. Em certa altura da cogitação escrita, já não sei onde tenho o centro da atenção – se nas sensações dispersas que procuro descrever, como a tapeçarias incógnitas, se nas palavras com que, querendo descrever a própria descrição, me embrenho, me descaminho e vejo outras coisas. Formam-se em mim associações de idéias, de imagens, de palavras – tudo lúcido e difuso –, e tanto estou dizendo o que sinto, como o que suponho que sinto, nem distingo o que a alma me sugere do que as imagens, que a alma deixou cair, me enfloram no chão, nem até, se um som de palavra bárbara, ou um ritmo de frase interposta, me não tiram do assunto já incerto, da sensação já em parque, e me absolvem de pensar e de dizer, como grandes viagens para distrair. E isto tudo, que, se o repito, deveria dar-me uma sensação de futilidade, de falência, de sofrimento, não conseguem senão dar-me asas de ouro. Desde que falo de imagens, talvez porque fosse a condenar o abuso delas, nascem-me imagens; desde que me ergo de mim para repudiar o que não sinto, eu o estou sentindo já e o próprio repúdio é uma sensação com bordados; desde que, perdida enfim a fé no esforço, me quero abandonar ao extravio, um termo clássico, um adjetivo espacial e sóbrio, fazem-me de repente, como uma luz de sol, ver clara diante de mim a página escrita dormentemente, e as letras da minha tinta da caneta são um mapa absurdo de sinais mágicos. E deponho-me como à caneta, e traço a capa de me reclinar sem nexo, longínquo, intermédio e súcubo, final como um náufrago afogando-se à vista de ilhas maravilhosas, em aqueles mesmos mares dourados de violeta que em leitos remotos verdadeiramente sonhara.



[388]

Tornar puramente literária a receptividade dos sentidos, e as emoções, quando acaso inferiorizem, convertê-las em matéria aparecida para com elas estátuas se esculpirem de palavras fluidas e lambentes [sic].



[389]

O lema que hoje mais requeiro para definição do meu espírito é o de criador de indiferenças. Mais do que outra, queria que minha ação pela vida fosse de educar os outros a sentir cada vez mais para si próprios, e cada vez menos segundo a lei dinâmica da coletividade... Educar naquela anti-sepsia espiritual pela qual não podia haver contágio de vulgaridade, parece-me o mais constelado destino do pedagogo íntimo que eu queria ser. Que quantos me lessem aprendessem – pouco embora, como o assunto manda – a não ter sensação nenhuma perante os olhares alheios e as opiniões dos outros, esse destino engrinaldaria suficientemente  a estagnação da minha vida. A impossibilidade de agir foi sempre em mim uma moléstia com etiologia metafísica. Fazer um gesto foi sempre, para o meu sentimento das coisas, uma perturbação, um desdobramento, no universo exterior; mexer-me deu-me sempre a impressão que não deixaria intactas as estrelas nem os céus sem mudanças. Por isso a importância metafísica do mais pequeno gesto cedo tomou um relevo atônito dentro de mim. Adquiri perante agir um escrúpulo de honestidade transcendental, que me inibe, desde que o fixei na minha consciência, de ter relações muito acentuadas com o mundo palpável.



[390]

Saber ser supersticioso ainda é uma das artes que, realizadas a auge, marcam o homem superior.



[391]

Desde que, conforme posso, medito e observo, tenho reparado que em nada os homens sabem a verdade, ou estão de acordo, que seja realmente supremo na vida ou útil ao vivê-la. A ciência mais exata é a matemática, que vive na clausura das suas próprias regras e leis; serve, sim, de, por aplicação, elucidar outras ciências, mas elucida o que estas descobrem, não as ajuda a descobrir. Nas outras ciências não é certo e aceito senão o que nada pesa para os fins supremos da vida. A física sabe bem qual é o coeficiente da dilatação do ferro; não sabe qual é a verdadeira mecânica da constituição do mundo. E quanto mais subimos no que desejaríamos saber, mais descemos no que sabemos. A metafísica, que seria o guia supremo porque é ela e só ela que se dirige aos fins supremos da verdade e da vida – essa nem é teoria científica, senão somente um monte de tijolos formando, nestas mãos ou naquelas, casas de nenhum feitio que nenhuma argamassa liga. Reparo, também, que entre a vida dos homens e a dos animais não há outra diferença que não a da maneira como se enganam ou a ignoram. Não sabem os animais o que fazem: nascem, crescem, vivem, morrem sem pensamento, reflexo ou verdadeiramente futuro. Quantos homens, porém, vivem de modo diferente do dos animais? Dormimos todos, e a diferença está só nos sonhos, e no grau e qualidade de sonhar. Talvez a morte nos desperte, mas a isso também não há resposta senão a da fé, para quem crer é ter, a da esperança, para quem desejar é possuir, a da caridade, para quem dar é receber.

Chove, nesta tarde fria de inverno triste, como se houvesse chovido, assim monotonamente, desde a primeira página do mundo. Chove, e meus sentimentos, como se a chuva os vergasse, dobram seu olhar bruto para a terra da cidade, onde corre uma água que nada alimenta, que nada lava, que nada alegra. Chove, e eu sinto subitamente a opressão imensa de ser um animal que não sabe o que é, sonhando o pensamento e a emoção, encolhido, como num tugúrio, numa região espacial do ser, contente de um pequeno calor como de uma verdade eterna.



[392]

O povo é bom tipo.

O povo nunca é humanitário. O que há de mais fundamental na criatura do povo é a atenção estreita aos seus interesses, e a exclusão cuidadosa, praticada tanto quanto possível, dos interesses alheios.

Quando o povo perde a tradição, quer dizer que se quebrou o laço social; e quando se quebra o laço social, resulta que se quebra o laço social entre a minoria e o povo. E quando se quebra o laço entre a minoria e o povo, acabam a arte e a verdadeira ciência, cessam as agências principais, de cuja existência a civilização deriva.

 Existir é renegar. Que sou hoje, vivendo hoje, senão a renegação do que fui ontem, de quem fui ontem? Existir é desmentir-se. Não há nada mais simbólico da vida do que aquelas notícias dos jornais que desmentem hoje o que o próprio jornal disse ontem.

Querer é não poder. Quem pôde, quis antes de poder só depois de poder. Quem quer nunca há-de poder, porque se perde em querer. Creio que estes princípios são fundamentais.



[393]

Reles como os fins da vida que vivemos, sem que queiramos nós tais fins.

A maioria, se não a totalidade, dos homens vive uma vida reles, reles em todas as suas alegrias, e reles em quase todas as suas dores, salvo naquelas que se fundamentam na morte, porque nessas colabora o Mistério.

Ouço, coados pela minha desatenção, os ruídos que sobem, fluidos e dispersos, como  ondas interfluentes ao acaso e de fora como se viessem de outro mundo: gritos de vendedores, que vendem o natural, como hortaliça, ou o social, como as cautelas; riscar redondo de rodas – carroças e carros rápidos por saltos –; automóveis, mais ouvidos no movimento  que no giro; o tal sacudir de qualquer coisa pano a qualquer janela; o assobio do garoto; a gargalhada do andar alto; o gemido metálico do elétrico na outra rua; o que de misturado emerge do transversal; subidas, baixas, silêncios  do variado; trovões trôpegos do transporte; alguns passos; princípios, meios e fins de vozes – e tudo isto existe para mim, que durmo pensá-lo, como uma pedra entre erva, em qualquer modo espreitando de fora de lugar.

Depois, e ao lado, é de dentro de casa que os sons confluem com os outros: os passos, os pratos, a vassoura, a cantiga interrompida (meio fado); a véspera na combinação da sacada; a irritação do que falta na mesa; o pedido dos cigarros que ficaram em cima da cômoda – tudo isto é a realidade, a realidade anafrodisíaca que não entra na minha imaginação.

Leves os passos da criada ajudante, chinelos que revisiono de trança encarnada e preta, e, se assim os visiono, o som toma qualquer coisa da trança encarnada e preta; seguros, firmes, os passos de bota do filho de casa que sai e se despede alto, com o bater da porta cortando o eco do logo que vem depois do até; um sossego, como se o mundo acabasse neste quarto andar alto; ruído de louça que vai para se lavar; correr de água; “então não te disse que”... e o silêncio apita do rio.

Mas eu modorro, digestivo e imaginador. Tenho tempo, entre sinestesias. E é prodigioso pensar que eu não quereria, se agora perguntassem e eu respondesse, melhor breve vida que estes lentos minutos, esta nulidade do pensamento, da emoção, da ação, quase da mesma sensação, o ocaso-nato da vontade dispersa. E então reflito, quase sem pensamento, que a maioria, se não a totalidade, dos homens assim vive, mais alto ou mais baixo, parados ou a andar, mas com a mesma modorra para os fins últimos, o mesmo abandono dos propósitos formados, a mesma sensação  da vida. Sempre que vejo um gato ao sol lembra-me a humanidade. Sempre que vejo dormir lembro-me que tudo é sono. Sempre que alguém me diz que sonhou, penso se pensa que nunca fez senão sonhar. O ruído da rua cresce, como se uma porta se abrisse, e tocam a campainha.

O que foi era nada, porque a porta se fechou logo. Os passos cessam no fim do corredor. Os pratos lavados erguem a voz de água e louça. [...]



[394]

E assim como sonho, raciocino se quiser, porque isso é apenas uma outra espécie de sonho.

Príncipe de melhores horas, outrora eu fui tua princesa, e amamo-nos com um amor doutra espécie, cuja memória me dói.



[395]

De suave e aérea a hora era uma ara onde orar. Por certo que no horóscopo do nosso encontro benéficos conjuntos culminavam. Tal, tão sedosa e tão sutil, a matéria incerta de sonho visto que se intrometia na nossa consciência de sentir. Cessara por completo, como um verão qualquer, a nossa noção ácida de que não vale a pena viver. Renascia aquela primavera que, embora por erro, podíamos pensar que houvéssemos tido. No desprestígio das nossas semelhanças os tanques lamentavam-se da mesma maneira, entre árvores, e as rosas nos canteiros descobertos, e a melodia indefinida de viver – tudo irresponsavelmente.

Não vale a pena pressentir nem conhecer. Todo o futuro é uma névoa que nos cerca e amanhã sabe a hoje quando se entrevê. Meus destinos os palhaços que a caravana abandonou, e isto sem melhor luar que o luar nas estradas, nem outros estremecimentos nas folhas que a brisa, e a incerteza da hora e o nosso julgar ali estremecimentos. Púrpuras distantes, sombras fugidias, o sonho sempre incompleto e não crendo que a morte o complete, raios de sol mortiço, a lâmpada da casa na encosta, a noite angustiosa, o perfume a morte entre livros só, com a vida lá fora, árvores cheirando a verdes na imensa noite mais estrelada do outro lado do monte. Assim as tuas agruras tiveram o seu consórcio benigno; as tuas poucas palavras sagraram de régio o embarque, não voltaram nunca naus nenhumas, nem as verdadeiras, e o fumo de viver despiu os contornos de tudo, deixando só as sombras, e os engastes, mágoas das águas nos lagos aziagos entre buxos por portões (à vista de longe) Watteau, a angústia, e nunca mais. Milênios, só os de vires, mas a estrada não tem curva, e por isso nunca poderás chegar. Taças só para as cicutas inevitáveis – não as tuas, mas a vida de todos, e mesmo os lampiões, os recessos, as asas vagas, ouvidas só, e com o pensamento, na noite inquieta, sufocada, que minuto a minuto se ergue de si e avança pela sua angústia fora. Amarelo, verde-negro, azul-amor – tudo morto, minha ama, tudo morto, e todos os navios aquele navio sem partir! Reza por mim, e Deus talvez exista por ser por mim que rezas. Baixinho, a fonte longe, a vida incerta, o fumo acabando no casal onde anoitece, a memória turva, o rio afastado... Dá-me que eu durma, dá-me que eu me esqueça, senhora dos Desígnios Incertos, Mãe das Carícias e das Bênçãos inconciliáveis com existirem...



[396]

Depois que as últimas chuvas deixaram o céu e ficaram na terra – céu limpo, terra úmida e espelhenta –, a clareza maior da vida que com o azul voltou ao alto, e na frescura de ter havido água se alegrou em baixo, deixou um céu próprio nas almas, uma frescura sua nos corações.

Somos, por pouco que o queiramos, servos da hora e das suas cores e formas, súditos do céu e da terra. Aquele de nós que mais se embrenhe em si mesmo, desprezando o que o cerca, esse mesmo se não embrenha pelos mesmos caminhos quando chove do que quando o céu está bom. Obscuras transmutações, sentidas talvez só no íntimo dos sentimentos abstratos, se operam porque chove ou deixou de chover, se sentem sem que se sintam porque sem sentir o tempo se sentiu.

Cada um de nós é vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmos. Por isso aquele que despreza o ambiente não é o mesmo que dele se alegra ou padece. Na vasta colônia do nosso ser há gente de muitas espécies, pensando e sentindo diferentemente. Neste mesmo momento, em que escrevo, num intervalo legítimo do trabalho hoje escasso, estas poucas palavras de impressão, sou o que as escreve atentamente, sou o que está contente de não ter nesta hora de trabalhar, sou o que está vendo o céu lá fora, invisível de aqui, sou o que está pensando isto tudo, sou o que sente o corpo contente e as mãos ainda vagamente frias. E todo este mundo meu de gente entre si alheia projeta, como uma multidão diversa mas compacta, uma sombra única – este corpo quieto e escrevente com que reclino, de pé, contra a secretária alta do Borges onde vim buscar o meu mata-borrão, que lhe emprestara.



[397]

Por entre a casaria, em intercalações de luz e sombra – ou antes, de luz e de menos luz –, a manhã desata-se sobre a cidade. Parece que não vem do sol mas da cidade, e que é dos muros e dos telhados que a luz do alto se desprende – não deles fisicamente, mas deles por estarem ali.

Sinto, ao senti-la, uma grande esperança; mas reconheço que a esperança é literária. Manhã, primavera, esperança – estão ligadas em música pela mesma intenção melódica; estão ligadas na alma pela mesma memória de uma igual intenção. Não: se a mim mesmo observo, como observo à cidade, reconheço que o que tenho que esperar é que este dia acabe, como todos os dias. A razão também vê a aurora. A esperança que pus nela, se a houve, não foi minha; foi a dos homens que vivem a hora que passa, e a quem encarnei, sem querer, o entendimento  exterior neste momento.

Esperar? Que tenho eu que espere? O dia não me promete mais que o dia, e eu sei que ele tem decurso e fim. A luz anima-me mas não me melhora, que sairei de aqui como para aqui vim  – mais velho em horas, mais alegre uma sensação, mais triste um pensamento. No que nasce tanto podemos sentir o que nasce como pensar o que há-de morrer. Agora, à luz ampla e alta, a paisagem da cidade é como de um campo de casas – é natural, é extensa, é combinada. Mas, ainda no ver disto tudo, poderei eu esquecer que existo?

A minha consciência da cidade é, por dentro, a minha consciência de mim.

Lembro-me de repente de quando era criança, e via, como hoje não posso ver, a manhã raiar sobre a cidade. Ela então não raiava para mim, mas para a vida, porque então eu (não sendo consciente) era a vida. Via a manhã e tinha alegria; hoje vejo a manhã, e tenho alegria, e fico triste... A criança ficou mas emudeceu. Vejo como via, mas por detrás dos olhos vejo-me vendo; e só com isto se me obscurece o sol e o verde das árvores é velho  e as flores murcham antes de aparecidas. Sim, outrora eu era de aqui; hoje, a cada paisagem, nova para mim que seja, regresso estrangeiro, hóspede e peregrino da sua presentação, forasteiro do que vejo e ouço, velho de mim.

Já vi tudo, ainda o que nunca vi, nem o que nunca verei. No meu sangue corre até a menor das paisagens futuras, e a angústia do que terei que ver de novo é uma monotonia antecipada para mim.

E debruçado ao parapeito, gozando do dia, sobre o volume vário da cidade inteira, só um pensamento me enche a alma – a vontade íntima de morrer, de acabar, de não ver mais luz sobre cidade alguma, de não pensar, de não sentir, de deixar atrás, como um papel de embrulho, o curso do sol e dos dias, de despir, como um traje pesado, à beira do grande leito, o esforço involuntário de ser.



[398]

Tenho por intuição que para as criaturas como eu nenhuma circunstância material pode ser propícia, nenhum caso da vida ter uma solução favorável. Se já por outras razões me afasto da vida, esta contribui também para que eu me afaste. Aquelas somas de fatos que, para os homens vulgares, inevitabilizariam o êxito, têm, quando me dizem respeito, um outro resultado qualquer, inesperado e adverso.

Nasce-me, às vezes, desta constatação, uma impressão dolorosa de inimizade divina. Parece-me que só por um ajeitar consciente dos fatos, de modo a que me sejam maléficos, a série de desastres, que define a minha vida, me poderia ter acontecido.

Resulta de tudo isto para o meu esforço que eu não intento nunca demasiadamente. A sorte, se quiser, que venha ter comigo. Sei de sobra que o meu maior esforço não logra o conseguimento que noutros teria. Por isso me abandono à sorte, sem esperar muito dela. Para quê? O meu estoicismo é uma necessidade orgânica. Preciso de me couraçar contra a vida. Como todo o estoicismo não passa de um epicurismo severo, desejo, quanto possível, fazer que a minha desgraça me divirta. Não sei até que ponto o consigo. Não sei até que ponto consigo qualquer coisa. Não sei até que ponto qualquer coisa se pode conseguir...

Onde um outro venceria, não pelo seu esforço, mas por uma inevitabilidade das coisas, eu nem por essa inevitabilidade, nem por esse esforço, venço ou venceria.

Nasci talvez, espiritualmente, num dia curto de inverno. Chegou cedo a noite ao meu ser. Só em frustração e abandono posso realizar a minha vida.

No fundo, nada disto é estóico. É só nas palavras que há a nobreza do meu sofrimento. Queixo-me, como uma criada doente. Ralo-me como uma dona de casa. A minha vida é inteiramente fútil e inteiramente triste.



[399]

Como Diógenes a Alexandre, só pedi à vida que me não tirasse o sol. Tive desejos, mas foi-me negada a razão de tê-los. O que achei, mais valeria tê-lo realmente achado. O sonho

Tenho construído em passeio frases perfeitas de que depois me não lembro em casa. A poesia inefável dessas frases não sei se será parte do que foram, se parte de não terem nunca sido.

Hesito em tudo, muitas vezes sem saber porquê. Que de vezes busco, como linha reta que me é própria, concebendo-a mentalmente como a linha reta ideal, a distância menos curta entre dois pontos. Nunca tive a arte de estar vivo ativamente. Errei sempre os gestos que ninguém erra; o que os outros nasceram para fazer, esforcei-me sempre para não deixar de fazer. Desejei sempre conseguir o que os outros conseguiram quase sem o desejar. Entre mim e a vida houve sempre vidros foscos: não soube deles pela vista, nem pelo tato; nem a vivi essa vida ou esse plano, fui o devaneio do que quis ser, o meu sonho começou na minha vontade, o meu propósito foi sempre a primeira ficção do que nunca fui.

Nunca soube se era demais a minha sensibilidade para a minha inteligência, ou a minha inteligência para a minha sensibilidade. Tardei sempre, não sei a qual, talvez a ambas, a uma ou outra, ou foi a terceira que tardou.

Dos sonhadores de ideais [?] – socialistas, altruístas, humanitários de toda espécie – tenho a náusea física, do estômago. São os idealistas sem ideal. São os pensadores sem pensamento. Querem a superfície da vida por uma fatalidade de lixo, que bóia à tona de água e se julga belo, porque as conchas dispersas bóiam à tona de água também.

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